On Falling, de Laura Carreira: sugada pela rotina da pobreza
'Eu, Daniel Blake' (2016), de Ken Loach; 'A Lei do Mercado' (2015), de Stéphane Brizé; 'Nos Corredores' (2018), de Thomas Stuber; ou Aloners (2021) [Solitários], de Hong Sung-eun - este último já abordado em DA VAGA DE CASA -, todos estes filmes, com visões muito próprias, mergulham no mundo do trabalho (dito) não qualificado, nos dias de hoje, dedicando-se a retratar, e consequentemente a problematizar, o impacto na vida do trabalhador, na vida do indivíduo. Da mecanização ou automatização do trabalhador, mediante tarefas e rotinas repetidas exaustivamente, muitas vezes sob controlo e pressão constantes, até à despersonalização, em que o trabalhador é (mais ou apenas) um número, uma peça na engrenagem, reduzido à tentativa infrutífera de demonstrar que não é descartável, passando pela precariedade, resultante de baixo salário, horários rotativos, trabalho de madrugada ou noturno, ou intervalos contados; tudo isto, que vamos vendo nos filmes de Loach, Brizé, Stuber e Sung-eun, abre caminho à desumanização, à dessocialização, à solidão, à alienação, à autoexclusão e, até, ao vazio existencial. A estreia em longas-metragens de Laura Carreira, On Falling (2024) [Sobre o Cair] - em exibição esta terça-feira no Leffest, com sala cheia no Nimas -, apresenta-nos a falência laboral, económica, social, moral, emocional e humana de uma trabalhadora que sobrevive. Com precisão, minúcia, sem recurso a hiperbolizações, dramatismos empolados, guinadas na narrativa ou vertigens, a câmara de Laura e o corpo de Joana Santos unem-se para nos fazer sentir cada uma destas falências, convocando-nos a tomar consciência de cada uma delas.
A abertura do filme não poderia ser mais bem conseguida: num travelling para a frente vemos Aurora (Joana Santos), uma portuguesa emigrada na Escócia, a seguir no meio do turbilhão de pessoas rumo aos torniquetes, que parecem ter dentes afiados, prontos a sugarem e triturarem toda aquela multidão sob aviso sonoro dos cartões que dão ordem para receber ordens lá dentro. Do ruído dos cartões para o ruído do leitor de códigos de barras, que Aurora empunha como uma pistola na guerra, a sonoridade parece não distinguir-se; já sugada e despachada do torniquete para os infindáveis corredores de um armazém, eis a sua missão (a solo): caçar nas prateleiras os produtos e registá-los no sistema. Vezes sem conta vemos Aurora presa na solidão do seu labirinto - para a realizadora portuguesa não basta saber qual é o trabalho da protagonista, é necessário ficarmos com ela, repetidas vezes, para a tal tomada de consciência. Aqui e assim, pois, começa a falência laboral, num trabalho rotineiro, repetitivo, monótono, solitário, constante, sem variações, sem alternância, que cansa, esgota e desumaniza, e que tem depois prolongamento nas pausas, na copa, onde o pouco tempo que há é mais para isolar e descansar, sobretudo quando não se vê as séries mainstream durante a noite - ouvimos por várias vezes, e com todo o sentido diria, conversas de colegas de Aurora sobre as séries que andam a ver, parecendo ser, irremediavelmente, o único tema de conversa; não é à toa que a NETFLIX e semelhantes não param de crescer, produzindo em catadupa conteúdos propícios para alienar, mastigar e deitar fora, numa lógica que parece articulada com o mercado laboral, que mói o trabalhador durante o dia para à noite ser embalado pelo streaming -, ou ao almoço, na cantina, onde o garfo fica na mão direita e o telemóvel, que exclui a faca na outra mão, é refúgio, entretenimento, vício de mão e de cabeça. Para adoçar literalmente as bocas, há barras de chocolate para premiar bons desempenhos - brindes para quem merece, quem se destaca como melhor tarefeiro - e bolinhos para rematar a evangelização dos valores, do espírito de equipa e do sucesso. Pobreza de espírito, na verdade.
Da falência laboral para a falência económica, na casa que partilha com outros imigrantes, numa autêntica sociedade das nações, e onde a cozinha faz de sala, visto que esta virou quarto, o ruído permanece; desta feita é a máquina que lava a roupa que se suja, roupa essa que depois é estendida no quarto, o único espaço sem partilha forçada. E para ir do trabalho para casa e vice-versa é preciso pagar o combustível à outra portuguesa que lhe dá boleia, sempre ao som de uma dance music que estende a alienação. E os imprevistos acontecem, até porque um azar nunca vem só, e Aurora parece viver longe da estrelinha, pelo que o mês pode ser longo demais e o countdown para o dia de São Receber (como diz a música dos Xutos) é severo e penoso para ela.
Há quem diga que quem não tem dinheiro não tem vícios, mas Aurora não tem vícios - não fuma, não se droga, não bebe mais do que um par de cervejas, não tem extravagâncias algumas, é aquilo que vulgarmente se chama de uma pessoa normal, com tudo que isso acarreta - e também não tem dinheiro. Numa autêntica falência social, Aurora entretém-se entre o desaustinado zapping de vídeos no telemóvel, deitada na cama - a fazer lembrar a Jina de Aloners - e o lavar da roupa; não fosse o convite do polaco recém-chegado a casa e Aurora só conheceria o bar da rua pela fachada exterior, e que bem lhe soube aquela dança de olhos fechados na pista, na melhor versão que o chip da alienação pode ter; mas quando o fast food é a única solução possível, o social até vem como forçado, como imposto, quase sem pedir licença, é pois numa Aurora encurralada contra a parede que a câmara fixa e se detém enquanto se vai dando o regabofe de estranhas convivas na mesma mesa.
E roubar um mísero pacote de batatas fritas para comer - o lento e ruidoso triturar de cada batata à hora de almoço no trabalho é desconcertante -, quando não se tem mais nada, não pode ser pecado, mas a falência moral começa a surgir em Aurora, que se esconde no escuro do quarto, pela luz que não pagou, e debaixo dos cobertores, à espera que o tempo passe.
Suportando silenciosamente e em solitário todas estas carências e privações, mantendo-se sempre funcional, operacional, sem quebrar, é inevitável que a componente emocional esteja de rastos e Aurora procure aconchego num ombro amigo de um polaco, que não lhe devolve o afeto; ou se sensibilize com o segurar de mão pela rapariga da loja de cosméticos - aqui Laura Carreira a exponenciar a sua sensibilidade, proporcionando um momento terno, sentido por Aurora e sentido por nós -; ou se agarre vigorosamente ao velho guarda do parque que a julga desmaiada, mas o seu pestanejar revela que aquilo é desfalecimento, e não desmaio, é a falência humana.
What will do when we have no money? [O que faremos quando não tivermos dinheiro?] questiona a música dos Lankum (banda irlandesa) no final do filme. Sobrará sempre a solidariedade de uns e os sorrisos genuínos de outros.
On Falling, de Laura Carreira (2024)
Visionado no Festival Leffest, Sala do Cinema Nimas
On Falling, de Laura Carreira (2024)