É um filme de coragem, coragem pessoal e coragem artística, este Lucefece: Where there is no vision, the people will perish (2023), que Ricardo Leite nos apresentou (também literalmente porque esteve presente na sessão) ontem à noite no Cinema São Jorge, na Competição Portuguesa do Doclisboa. Coragem pessoal para contar momentos trágicos e dolorosos da sua vida, onde a morte deixou marca indelével; coragem artística para construir este labirinto onde se entrecruza a sua história de vida, por meio de imagens captadas com a sua câmara Super 8, e a História que o Homem vai construindo, recorrendo a imagens de arquivo. Foram 20 anos de vida e quatro quilómetros de fita vertidos numa estoica entrega pessoal e artística.
No debate que se seguiu ao visionamento do filme, Ricardo Leite falou da influência do filósofo francês Gilles Deleuze, especificamente na sua conceção do que é ser de esquerda, ou seja, na perceção das coisas, no que concerne a um ponto de partida e a um ponto de chegada; para Deleuze alguém de esquerda pensa primeiro no mundo, depois no continente (onde está inserido), a seguir vem o país, à frente da cidade, da rua, até chegar a si próprio. É uma ideia de construção e reflexão coletiva, sobrepondo-se ao indivíduo, que Leite vai refletindo no filme, confrontando-nos com as origens do Homem no seu contacto com a natureza, um Homem primitivo, um Homem místico, que o próprio realizador encarna como ator nas margens do Rio Lucefécit, no concelho do Alandroal, e, por outro lado, o desenvolvimento maquinal do Homem contemporâneo como senhor do espaço, como senhor da guerra. O Homem do passado coloca a máscara de Lúcifer e cria-se o Homem-Diabo, o tal ser humano que rebenta com tudo, como diz o pai de Ricardo Leite quando reflete sobre o rumo da sua vida em simultâneo com o rumo da História; as máscaras de Lúcifer vão-se replicando pelas árvores, ficando em suspenso, como que prontas a receberem novos rostos, rostos de guerra e destruição: Putin, Netanyahu, Bashar al-Assad, Bin Laden, Bush...poderiam ser.
Da Guerra Fria, incluindo a guerra na corrida ao espaço (Armstrong versus Gagarin), às guerras contemporâneas, passando pela guerra colonial onde o pai do realizador foi combatente, vemos imagens de satélite, difusas, com movimentações militares, alternadas com imagens de cidades devastadas, ou ainda imagens de soldados portugueses na mata com os sons apaziguadores da natureza a ecoarem enquanto o pai relata peripécias atrozes da guerra. Num registo de autêntico labirinto mental, Ricardo Leite - tinha como passatempo predileto na infância desenhar labirintos por entre as visitas ao pai na prisão - vai nos fazendo serpentear por diferentes caminhos entre a História mundial contemporânea, ancorada em guerras e redefinição de fronteiras, com consequências trágicas como os refugiados; entre a História do Portugal Colonial e do Portugal de Abril, reservando espaço para um excerto de delicioso debate sobre a cultura intelectual e a cultura popular no programa Teleforum da RTP, em 1975, onde entre cigarros vemos Sophia de Mello Breyner, António Reis, João Bénard da Costa ou Eduardo Prado Coelho discutirem a revolução cultural e artística necessária num país em revolução política e social; e entre a história da sua vida, onde há uma parte marcante de consequência e reflexo das outras Histórias (do Mundo e de Portugal).
E o futuro? Vemos o ovo da serpente, vemos o ventre da mãe dos filhos de Ricardo Leite, vemos a nova serpente a sair do ovo, vemos o bebé a sair da mãe. O futuro passa por renascer, sem que voltemos a morder a própria cauda.
Lucefece: Where there is no vision, the people will perish, de Ricardo Leite (2023)
Visionado no Festival Doclisboa, Cinema São Jorge