DA VAGA DE SALA - Especial DOCLISBOA

Stéphane Pires • 22 de outubro de 2023

'Em Ano de Safra', de Sofia Bairrão: movimentos, sons e cores


Lembrei-me de 'O Movimento das Coisas' (1985), de Manuela Serra, e pensei em 'Alcarrás' (2022), de Carla Simón, por diferentes razões, enquanto via 'Em Ano de Safra' (2023), da estreante em longas-metragens Sofia Bairrão, esta manhã de domingo no Cinema São Jorge, na Competição Portuguesa do Doclisboa. Terminado o filme, e aberto o período para conversa com a Sofia Bairrão, tive a oportunidade de questioná-la acerca dos seus realizadores de referência, e, entre os nomes portugueses e estrangeiros, soou o de Manuela Serra. Vi semelhanças com o 'O Movimento das Coisas' na abordagem demonstrativa e contemplativa, simultaneamente, das tarefas e/ou trabalhos de mão(s) feitos por aquelas gentes nos campos, todos não atores, nas hortas, em casa; mais do que o confronto tecnológico que é mencionado na sinopse e de que a própria realizadora fala na conversa pós-filme, que a mim me pareceu sempre ténue, a marca identitária maior de 'Em Ano de Safra' é a forma como nos mostra delicadamente, com paciência e com sentido o que aquelas mãos são capazes de fazer, abrindo sempre que pode todo um horizonte para nosso deleite. Pensei também em 'Alcarràs' por semelhanças no realismo naturalista que atravessa os pessegueiros e a colheita dos pêssegos, no filme espanhol, os sobreiros e o descortiçamento da cortiça, no filme português, com as passagens (ou tentativas) de testemunho geracionais nas famílias, o saudosismo do passado, e o presente a tentar construir um futuro, que é cada vez mais incerto. Contudo, com o evoluir do filme até ao seu epílogo, a balança das similitudes cai claramente mais para o lado de 'O Movimento das Coisas'.


Apesar de termos duas personagens centrais no filme, a jovem Liliana e o pai, e se ao início o filme dá a entender que pode debruçar-se na relação destas personagens, no aprofundamento das suas características e dos seus contrastes - Liliana come bolonhesa enquanto o pai come sandes de enchido; Liliana está mais em casa, o pai está mais pela horta (quintal da casa) -, no fundo funcionam como guias de referência na mostra daquelas vidas, daquelas pessoas ligadas ao campo, mais concretamente à atividade de extração de cortiça, em Vale das Mós, freguesia do Concelho de Abrantes. É de movimentos, de cores, e de sons que o filme vive e respira, seja na horta de casa, seja nos campos e searas por onde se estendem os sobreiros. Na horta o pai apalpa as laranjas, que depois vemos Liliana a descascar lentamente ouvindo nós o deslaçar da casca; à noite ouvimos o latir dos cães, ouvimos as cigarras, ouvimos a água; pela manhã ouvimos o cuco, ouvimos o galo, ouvimos o sachar (cavar com o sacho) do vizinho ou amigo do pai, e vemos, também, em pormenor, com frescura e luminosidade, o verde nas couves e nos cebolos, o verde a avermelhar nas malaguetas e nos morangos, e ouvimos o apitar do padeiro, que distribui pão quase porta a porta (e quão bom por vezes e irritante outras vezes foi para mim esse som durante anos no meu Trás-os-Montes quando a buzina anunciava, pelas manhãs, a chegada de pão fresco).


A cortiça que se extrai é para vender e o negócio faz-se em casa, recebendo os compradores, todos querem pagar o mínimo possível, e a culpa é do mercado, dizem eles, como se diz em muitas outras áreas de atividade; mas há sempre alguma cortiça que sobra e dela faz-se muita coisa com as mãos, Sofia fixa a câmara cerca de dois minutos e meio para vermos um senhor a construir uma cadeira, convém termos perceção do trabalho artesanal, vivendo nós cada vez mais numa sociedade em que abunda o produto final, em que já não criamos. Pelos campos vemos o verdadeiro ofício dos tiradores de cortiça, ouvimo-los também, apesar de algumas vezes serem impercetíveis as conversas, eu diria que por opção de estilística da realizadora que por vezes só quis sonorizar as imagens com ruído, mas se assim não for claramente é um erro não legendar essas conversas; bem percetível é o relembrar de saudosas memórias do antigamente (aqui recordei as minhas colheitas da azeitona, apanha da batata, vindima com multidões de velhos e novos e os verdadeiros piqueniques de guisados no tacho no fim da labuta) de uma das mulheres que rechega a cortiça, bem como o evidenciar das contínuas desigualdades remuneratórias entre homens e mulheres, no antes e no agora; com esta mulher a câmara move-se, segue os seus passos, para a frente e para trás; aquando da hora da bucha, a câmara baixa e enquadra o dar ao dente de todos.


Os machados têm de estar bem afiados e as mãos voltam a ser decisivas em mais uma arte; outra arte, a de extrair a cortiça, é passada do pai para o filho, de machados na mão, quase que dançando em volta da árvore; os sobreiros fumegam com o sair da cortiça e as formigas abundam; o plano abre e a vista é de perder fôlego, é como vermos em três dimensões, todas elas naturais: o amarelo esverdeado das searas, o verde-escuro e o castanho dos sobreiros na colina, o céu azul e as nuvens brancas mais acima. Paisagens assim apetece fotografar e filmar de diferentes formas e feitios, nos tempos do agora também de drone, entretenimento de Liliana e aproveitamento de Sofia para nos dar panorâmicas da região, travellings para a frente, para trás, para cima e para baixo.


Curioso para perceber o futuro que o cinema de Sofia Bairrão vai seguir, que realismo vai predominar, que história nos vai contar e mostrar com a sua lente, mas uma coisa é certa: é claramente capaz de construir um bom filme pelas imagens.


'Em Ano de Safra', de Sofia Bairrão (2023)

Visionado no Festival Doclisboa, Cinema São Jorge

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