Efetivamente não poderia inaugurar a DA VAGA REALIZADOR DO MÊS com outro nome que não fosse o de Rohmer, Éric Rohmer, um dos mestres maiores da Nouvelle Vague (esse movimento que transformou e recriou o cinema), a par de Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais ou Jacques Rivette e, claro, Agnès Varda. Devo a Rohmer a referência à sua identidade no nome deste espaço - NA VAGA DE ROHMER -, mas mais do que isso, e também a consequência disso, aquilo que foi a minha transformação e recriação (um pouco como a Nouvelle Vague fez com o cinema) enquanto espectador de cinema, enquanto amante de cinema, e, por conseguinte, enquanto alguém que agora se atreve a escrever sobre cinema, fruto da maior influência de todos os Realizadores de quem vi filmes até hoje. Houve um antes (até ver Rohmer) e um depois no meu processo de visionamento, interpretação, valoração e reflexão do filme, pois o seu cinema preencheu por completo aquilo que mais procurava, mais me interessava e mais gostava até àquele momento, como descrevo na área 'Sobre' do NA VAGA DE ROHMER. Rohmer despertou-me para a ideia de que a partir dali teria de dar-me mais ao cinema, para assim também receber mais, abrindo-se uma nova vaga para mim. Há muito mais para lá do cinema de Rohmer, mas haverá sempre Rohmer!
Ao longo do mês de Outubro em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS escreveremos sobre filmes de Rohmer, e quem sabe se não traremos um filme de cada um dos quatro capítulos: 'Contos Morais'; 'Comédias e Provérbios'; 'Adaptações literárias e outros'; 'Os Contos das Quatro Estações'. Não é fácil escolher, nem mesmo entre os primórdios - ainda nos anos 60, como 'A Colecionadora' (1967) ou 'A Minha Noite em Casa de Maud' (1969) - e os finais - na década de 90, como o 'Conto de Verão' (1996) ou o 'Conto de Outono' (1998). Posto isto, decidi começar mais pelo meio, temporalmente falando, escolhendo para arranque o 'Noites de Lua Cheia' (1984), do 2.º capítulo, 'Comédias e Provérbios', curiosamente, par hasard [por acaso] coincide como o meu ano de nascimento. "Qui a deux femmes perd son âme, qui a deux maisons perd sa raison" ("Quem tem duas mulheres perde a sua alma, quem tem duas casas perde o juízo"), é com este provérbio que Rohmer nos lança para o 'Noites de Lua Cheia'.
É a partir da dicotomia Paris / subúrbios (la banlieue) - cidades projetadas e construídas para albergar aqueles que saíram de Paris e que maioritariamente lá continuavam a trabalhar, deslocando-se diariamente para a capital, movimento este que se verificou, como sabemos, nas grandes cidades europeias - que Rohmer nos apresenta o recém-casal Louise (Pascale Ogier) e Rémy (Tchéky Karyo), com o complemento crucial do amigo de Louise, Octave, o brilhante, eloquente e à data tão jovem Fabrice Luchini. Paris e la banlieue representam muito mais do que apenas dois locais, personificam vidas e ideais de vida, amplamente distintos: Paris é eternamente jovem, é efervescente, é notívaga, é festiva, é bonne-vivante, é agitada, é luminosa, é instintiva; por seu lado, la banlieu é pacata, é taciturna, é organizada, é silenciosa, é cinzenta, é rotineira, é constante, é caseira.
O plano de abertura do filme, numa lenta e longa panorâmica de quase dois minutos, mostra-nos o comboio que passa, essencial para o leva e traz de Paris, mostra-nos blocos de apartamentos iguais e descaracterizados, alguns ainda a serem construídos, mostra-nos um amplo terreno aberto provavelmente à espera de nova construção, mostra-nos a quase ausência de pessoas nas ruas (ou estão em casa ou estão em Paris), não vemos iluminação, não vemos comércio, não vemos vida, vemos um céu cinzento; a câmara leva-nos por fim até ao prédio n.º9 onde Louise e Rémy ensaiam uma vida a dois. Ele é arquiteto, ela decoradora de interiores; ele sente-se realizado com o trabalho e com a vida, incluindo a relação e a casa, ela sente-se angustiada e cheia de indefinições com o rumo da sua vida; ele quer sossego e uma vida de casal plena, ela quer quebra de rotina, quer celebrar a vida, quer espaço para ser ela própria; ele é la banlieue e ela é Paris.
Octave é o peso de que Louise precisa para equilibrar a balança a favor de Paris - onde ainda mantém o seu pequeno estúdio e que após uma renovação volta a ganhar vida na vida dela -, é um boémio, usa cachecóis coloridos, é intelectual, escritor, sempre acompanhado do seu bloco de notas para apontar os seus pensamentos no meio do rebuliço dos cafés parisienses, é o melhor amigo de Louise e declaradamente apaixonado por ela. A cumplicidade entre ambos é arrebatadora, capazes de manterem conversas intermináveis, com respostas a devolverem sempre perguntas, não há silêncios entre eles, falam por meio de ataques de sedução de Octave, o melhor deles (os ataques de sedução) na sua casa quando veste uma camisa branca e a câmara mostra-lo em perfil, duplicado pelo espelho, referindo-se a Louise como sendo ao mesmo tempo virginal e amazona; Louise prefere privilegiar a amizade entre ambos e resiste à consumação física da sedução, que para Octave é a necessária ligação absoluta.
Há uma comunhão umbilical entre Louise e Octave no seu amor a Paris, à vida de Paris, onde dançam descontraidamente nas festas em salas de pé alto, espelhadas e douradas, com grandes portas de madeira, num glamour desprendido; ou conversam nos grandes cafés de clientes não habituais, de anonimato, como diz Octave, apesar de Rohmer introduzir aqui o seu par hasard com o avistamento de Rémy, no Café Depart Saint Michel (em 2010 lembro-me de lá ter bebido um copo de vinho tinto e ainda não tinha visto este filme); e como é vibrante esse Café, e como fazem falta esses Cafés típicos das grandes cidades, mas com aquela atmosfera e aquela vida ali mostradas (anos 80), bem como noutros filmes de Rohmer e de Paris, estou a pensar no 'A Minha Noite em Casa de Maud' (1969) e no 'Amor às 3 da Tarde' (1972), esses lugares com alma, com história e histórias, onde as conversas (não as digitais) fluíam. Tenho saudades de não ter vivido tempos áureos da Brasileira, do Nicola, da Suiça, da Versailles ou do Galeto, em Lisboa; cheguei demasiado tarde para tal, todos esses espaços frequentei e a alguns ainda vou de quando em vez (especialmente o Galeto), mas já numa outra era, já com smartphones, já com muitos turistas, já com menos e outras conversas.
É neste Café Depart Saint Michel que Octave, de olhos arregalados, disserta sobre o viver numa grande cidade como Paris e o viver fora dela, seja nos subúrbios, seja no campo; poucas vezes ou nenhuma vez senti tanta identificação verbalizada num filme como neste momento, quando Fabrice Luchini (Octave) refere-se à angústia que se sente na vida do campo, que quase sufoca, apesar de o ar ser incomparavelmente mais puro, e da necessidade suprema de se viver no centro de uma cidade, cidade essa grande, como que se fosse o centro do mundo: Paris é como estar no centro do mundo para Octave; Lisboa é como estar no centro do mundo para mim. E é curioso que, mais à frente, a própria Louise replica a ideia de Octave, quando se refere à necessidade de manter uma casa em Paris, como estando a manter-se no centro do mundo.
A escolha entre a vida boémia de Paris e a vida pacata de la banlieue tem de ser feita, gera dilema em Louise, que se quer repartir entre ambas, como que vivendo duas vidas. Rohmer quer que nós sintamos esse dilema dela, faz-nos ficar com Louise pacientemente: na cena dos sucessivos telefonemas infrutíferos que esta faz para combinar uma saída na sua primeira noite na casa de Paris, vemos e ouvimos o discar dos sete números de cada chamada que é feita (ninguém atende); e na cena pós-cama com o saxofonista em que temos um minuto de câmara fixa, com uma Louise imóvel, tal como a coluna branca (obra de arte) ao seu lado.
Em mais uma brilhante ode a Paris, em mais um postal animado da cidade-luz, Rohmer passa-nos neste 'Noites de Lua Cheia' uma vibrante atmosfera noturna de uma cidade que vive, noite e madrugada adentro, com danças, conversas e curtes, mesmo que seja uma quinta-feira e haja um último comboio para apanhar rumo à la banlieue; uma cidade que tem na lua cheia um pretexto para não dormir, que liga a noite ao dia num café.
Les Nuits de la pleine lune, de Éric Rohmer (1984)
Visionado em Filmin Portugal
'Noites de Lua Cheia', Éric Rohmer (1984)