Nos tempos mais recentes temos sido presenteados com estreias impactantes de jovens realizadoras em longas-metragens. Destaco Libertad (2021), da espanhola Clara Roquet; Aftersun (2022), da escocesa Charlotte Wells; e 'Nunca Chove na Califórnia' (2022), da norte-americana Jamie Dack. As três realizadoras têm em comum, além da tremenda qualidade que exibiram nos seus filmes de estreia, o facto de terem partido de uma experiência pessoal para contarem uma história, ressalvando, todas elas, que não se trata de um retrato autobiográfico da(s) sua(s) própria(s) história(s) de vida(s), mas sim de uma criação marcada por inegável influência de algo que viveram. Clara Roquet referiu que as sucessivas férias de verão com a sua numerosa família - essencialmente a avó doente de Alzheimer com a respetiva cuidadora - foram o mote para desenvolver o seu Libertad; Charlotte Wells reconheceu que o seu Aftersun é emocionalmente autobiográfico devido à morte do pai quando ela era adolescente, mas há uma história que ela cria; Jamie Dack falou do impacto que a sua relação com um homem mais velho teve na sua adolescência, e da dificuldade que teve em sair dela, como determinante para desenvolver este tema no seu 'Nunca Chove na Califórnia', que já havia sido iniciado na curta-metragem Palm Trees and Power Lines (2018), cujo nome original da longa continua aliás a ser o mesmo. É possível que ao pegarem em experiências de vida que as marcaram, Clara, Charlotte e Jamie tenham conseguido construir uma estrutura sólida, como que um alicerce, para erguerem depois a sua obra com o seu respetivo estilo: e isso resultou deveras muito bem!
Numa entrevista que deu já após ter ganho o galardão de melhor realizador(a) no Festival Sundance 2022, Jamie Dack falou das dificuldades que teve na distribuição do próprio filme. E porquê? Apesar de reconhecerem a qualidade, o tema em si (o relacionamento entre um homem de 37 anos e uma rapariga de 17 anos, com consequência devastadora) era difícil e demasiado incómodo para muitas distribuidoras. E eu diria que mais difícil o tema se tornou pela qualidade artística com que Dack filmou: o filme é difícil e incómodo de se ver, não por aquilo que mostra, mas sim pela forma como mostra. Não vemos uma gota de sangue, não vemos corpos nus, não vemos cenas sexuais explícitas: a enorme violência psicológica, que também chega a ser física, a que Lea (a estreante Lily Mclnerny) é sujeita, nós vemo-la e sentimo-la pelo rosto dela, em grandes planos, e pelo estacionamento cirúrgico e demorado da câmara que filma.
Até chegar à parte violenta, mais no seu final, o filme dá-nos tensão, alta tensão, como aquela que circula nos cabos dos múltiplos postes, que juntamente com as árvores preenchem um terreno baldio por onde Lea nos aparece pela primeira vez e para onde ela vai outras vezes, sozinha, de phones nos ouvidos. A tensão nasce a partir do momento em que Tom (Jonathan Tucker) pisca literalmente o olho a Lea, quando ocasionalmente se cruzam num daqueles cafés tipicamente americanos onde o som do ketchup a sair do frasco é abundante. Quando Lea, 17 anos, aceita a boleia de Tom (37) percebemos que o primeiro passo para algo de trágico está dado, mas não sabemos quando, nem como, e não temos música para acelerar ou arrefecer o suspense, para anunciar o perigo, para ameaçar a ameaça; as imagens é que comandam, e o som é feito de ruídos, silêncios, respiração, salvo uma exceção em que parecendo querer brincar connosco aos filmes de suspense, no bom sentido artístico, Jamie Dack mostra-nos os dois na praia, dentro de água, nós a vê-los de costas, e de repente Tom empurra bruscamente Lea, mas era apenas uma brincadeira dele, e aí ouvimos então um breve trecho de música (instrumental) para serenar, apaziguar e dizer-nos que para já está tudo bem e que devemos contemplar as belas imagens da praia e do sol! Depois há uma cena em que Lea está com amigos a ver um filme de terror, do qual só ouvimos o som, e aqui penso que Dack está como que a preparar-nos para algo de terrífico que viveremos mais à frente.
É Verão na Califórnia, está calor, Lea enfada-se em casa, ora espojada no sofá, ora deitada no chão do quarto com a amiga Amber (Quin Frankel), que vive agarrada às stories do Instagram, ao contrário de Lea que é uma versão mais clássica de adolescente - quando Tom lhe oferece boleia pela primeira vez e, perante a indiferença dela, pergunta-lhe por diferentes gostos musicais, ela sorri e cede perante os clássicos -, ora estendida ou estendidas no jardim, onde este ócio de Verão captado muitas vezes por uma câmara baixa, ao nível do chão, a fazer lembrar o icónico Yasujiro Ozu, é interrompido apenas pelo barulho do corta-relvas que se impõe ao leve ruído da ventoinha de mão. Lea vive só com a mãe, que por sinal entretém-se com diferentes namorados, ou pretendentes, em casa; a desarmonia entre elas é evidente. Apesar da frequente companhia de Amber, Lea vive desintegrada no grupo de amigos com quem bebe copos, fuma cigarros, dá bongadas e até se envolve sexualmente, sem qualquer emoção ou prazer; no fundo estar ali é como não estar, não se identifica com as conversas ocas, é apenas uma alternância à solidão.
Tom facilmente preenche o vazio que Lea sente, ao mesmo tempo é como que um pai (que ela não vê há anos), um amigo e um namorado; demonstra interesse, apoio, proteção, amor, ouve o que ela diz, valoriza o que ela pensa e 'vende-se' como um marketeer de sonhos e liberdade, na onda de um “podes ser aquilo que tu quiseres ser". O encontro ao pôr-do-sol, o descolar noturno dos aviões com eles deitados na carrinha, a serenidade da praia quase deserta, juntamente com o posicionamento físico de Tom perante Lea, sentado muitas vezes em baixo, falando e vendo-a de baixo para cima, como que colocando Lea num pedestal, no topo, revelam todo um quadro que aos olhos dela só poderia ser idílico. Para nós, que vemos, o quadro é de tensão, até ao momento em que se torna violento.
Em 'O Sol do Futuro' (2023), filme de estreia em DA VAGA DE SALA, Nanni Moretti aborda uma espécie de trinómio em torno de arte, moral e violência, ao evocar o 'Não matarás' (1989), de Kieslowski, como um exemplo de uma cena de morte bem retratada artisticamente e do ponto de vista da moral, pela complexidade, pela duração, pela densidade do ato, provocando perturbação ao longo de sete minutos, ao contrário de uma morte (assassinato) a tiro fugaz. Em 'Nunca Chove na Califórnia', Jamie Dack partilha a premissa defendida por Moretti e retrata a cena do ato sexual de Lea com um 'cliente' de forma demorada, perturbadora e angustiante; estaciona a câmara durante cerca de cinco minutos à entrada do quarto, deixando-nos a uma distância tal em relação aos dois que nos demonstra a nossa incapacidade e a nossa imobilidade perante a cena, são cinco minutos sem música, em que quase não ouvimos a voz de Lea, em que assistimos à preparação para o ato hediondo; ao fim destes intermináveis cinco minutos, a câmara salta para o rosto de Lea e dali só sai para nos mostrar um ponto fixo na parede para onde ela olha única e fixamente.
Claro que a escolha de Jamie Dack em fechar-nos naquele quarto de hotel durante quase 10 exasperantes minutos é criticável, poderia optar por não mostrar a cena, fazendo ela parte na mesma do filme, mas seria sempre uma fuga ao seu estilo, que está a desenvolver enquanto autora, e à força da história que estava a contar; o sofrimento atroz vivido por aquela adolescente naquele momento tinha também de ser sentido por nós, espectadores, sem recurso, claro está, a violência gratuita. Se à primeira vista questionei-me sobre a opção, hoje compreendo-a e apoio-a: Jamie fê-lo com a mestria de quem sabe colocar a câmara no sítio certo. É um daqueles filmes que acima de tudo é contado pelas imagens.