A coerência de Nanni Moretti ao longo dos seus 50 anos de carreira (sim, já são 50 anos, em 1973 estreava-se com a curta-metragem 'La Sconfita', filmada com a sua câmara super 8) talvez seja o seu mais forte e decisivo atributo. Coerente à ideia de manter-se como ator nos filmes que realiza; coerente à ideia de trazer para os seus filmes o seu aporte pessoal, partindo muitas vezes de um registo íntimo e quase autobiográfico em que realidade e ficção se tocam; coerente à ideia de expor as suas reflexões e visões políticas da sociedade, não se coibindo, pelo menos desde o 'Palombella Rossa', de 1989, (o filme mais antigo que vi dele), de afirmar claramente o seu posicionamento político à la sinistra, sem deixar de refletir criticamente sobre o rumo identitário da esquerda italiana, em particular do Partido Comunista Italiano (PCI).
Há uns dias li uma entrevista que
Moretti
concedeu à célebre revista francesa
Cahiers du Cinema, em 1987, fase inicial da sua carreira, e aí percebi que a sua coerência se estende também ao seu processo criativo nas filmagens com os atores, e é incrível que ao cabo de 36 anos consigamos ver vertidas neste seu novo filme,
'O Sol do Futuro' (2023), as mesmas ideias e convicções. "O diretor tem o filme todo na cabeça e nem sempre quer comunicar, mostrar a outros o seu processo, do guião à filmagem", dizia
Moretti
nessa entrevista; e em 'O Sol do Futuro' vemos os atores do filme que
Giovanni (Nanni Moretti) está a realizar - sobre o PCI e a Revolução Húngara contra a URSS em 1956 - expectantes para saberem como será a cena final, do suicídio.
"Enquanto ator, sou incapaz de improvisar. Não quero tentar e não acredito de maneira alguma na improvisação. Como cineasta, também não improviso. Todos os diálogos são escritos previamente, nada é improvisado", dizia
Nanni
em 1987 e diz
Giovanni
em 2023, quando recrimina a sua atriz por improvisar, ela que tenta persuadi-lo, evocando a memorável dupla
John Cassavetes
e
Gena Rowlands, mas nem esses dois vultos do cinema abalam a coerência, e, claro, a convicção de
Moretti, que nessa conversa com a
Cahiers du Cinema falava ainda na necessidade de "múltiplas repetições dos
takes" nas filmagens, pelo que, no filme, só poderíamos ver a expressão facial de um
Giovanni
atónito quando o jovem realizador que está a rodar um filme de ação - cuja mulher de
Giovanni,
Paola (Margherita Buy) está a produzir - refere que o primeiro
take
é sempre o melhor!
Giovanni, personagem que por sinal no filme é também um realizador, em mais um alter-ego de
Moretti, está envelhecido e chato: a esposa
Paola
já não o aguenta mais, mesmo com a (parca) ajuda terapêutica de um velho bonacheirão nas várias sessões que vai tendo às escondidas do marido; a filha já não consegue fazer o frete de assistir com o pai ao
'Lola' (1961),
de
Jacques Demy, e juntamente com
Paola
abandonam o sofá da sala, onde
Giovanni
se sentara no meio das duas.
Giovanni
sente-se incompreendido e solitário, já não tem a fiel
Paola
ao seu lado a produzir mais um filme, como sempre fez; e que bem escolhida que foi a música de
Joe Dassain, 'Et si tu n'existais pas', a sonorizar um momento de solidão, e certamente reflexivo, de
Giovanni, enquanto dá uns (já habituais) toques numa bola (lembro-me de ouvir este tema na Suíça, com uns cinco anos de idade, antes ainda de vir viver para Portugal).
Tal como
Nanni,
Giovanni
quer abrir um novo caminho para a História do PCI, quer reescrever a História através do filme que está a fazer sobre a Revolução Húngara de 1956 (movimento popular de revolta em Budapeste contra o controlo e as políticas da União Soviética, que depois foi reprimido pela intervenção militar da URSS levando à morte de mais de 2 mil húngaros) e a reação do PCI, após a chegada de um grupo de circo húngaro a Roma; rasga o
poster
de Estaline e coloca os comunistas italianos a debaterem acerca da solidariedade ou não com a intervenção militar soviética em Budapeste; e, claro, aqui
Nanni
está, a partir do evento histórico de 1956, a projetar o futuro, o hoje, a invasão russa da Ucrânia e os consequentes alinhamentos ou não alinhamentos das esquerdas atuais.
Após o falhanço do produtor do filme, personagem interpretada pelo ator e realizador francês Mathieu Amalric, e gorada a hipótese NETFLIX, naquele que foi dos momentos mais cómicos, seguem-se uns coreanos que aceitam produzir o filme após o deslumbre dramático que lhes suscitou a leitura do argumento: "É a morte do comunismo, é a morte da arte, é a morte da moral, é a morte do amor", rejubila a coreana, para desespero de Giovanni que busca precisamente o oposto - reescrever a História do comunismo italiano, proteger a arte cinematográfica, preservar a moral e reconhecer o amor; definitivamente, estes são os 4 grandes desígnios de 'O Sol do Futuro'.
Nanni e/ou Giovanni aproveitam a rodagem do filme de ação produzido por Paola, de um jovem e convencido realizador, para censurar a violência gratuita, a violência pela violência no cinema, sem um pingo de arte; perante uma cena de crime, de morte, rápida, fugaz, sem elaboração, é trazido à liça o 'Não Matarás' (1988), de Kieslowski e a sua cena de crime densa, perturbadora (filme que ainda não vi, mas, claro, fui espreitar essa cena de sete minutos; de Kieslowski só vi ainda a trilogia: Branco; Azul; Vermelho,) para Giovanni dizer a toda a equipa de rodagem que ali estava, e Nanni falar para produtores, realizadores e público global que é importante preservar a arte cinematográfica, por mais que as NETFLIX deste mundo queiram gatilhos rápidos, mas também para falar da moral, a moral na representação dos atos: aquela morte rápida e fácil não cria dilemas ou perturbações àquele criminoso representado e a potenciais criminosos na vida real, é vendida a ideia de que matar é fácil. Giovanni acaba por virar costas à cena, segue os seus passos incompreendidos, e a coisa dá-se tal e qual, imediatamente e de forma imediata.
É na qualidade de criador, e nessa oportunidade que tem pela realização do seu filme, que
Giovanni
reformula a cena final para dar resposta aos seus grandes desígnios:
reescrever a História do PCI, proteger a arte cinematográfica, preservar a moral, reconhecer o amor. Sim, não falámos do amor até aqui, mas ele viverá no filme de
Giovanni, e vive no filme de
Nanni: o amor de
Paola
por
Giovanni, o amor de
Giovanni
por
Paola, o amor da filha dos dois pelo recém-marido bem mais velho, sublinhado num enternecedor tocar de piano a quatro mãos.
Por fim, a música e a dança embalam toda a equipa de rodagem (a fazer lembrar aqui a cena de dança final do '8 1/2' (1963), de Fellini, há outras semelhanças entre as duas obras e os personagens
Giovanni
e
Guido, ambos realizadores, ambos a viverem num labirinto de inquietações e indefinições, pontuadas por sonhos e imaginação); a iluminação elétrica do início do filme dá agora lugar à luz do sol que ilumina os rostos na marcha pelo sonho e pelo futuro. Neste
'Sol do Futuro' Moretti
volta com grande mestria ao registo mais autobiográfico de 'Caro diário' (1993) ou
'Abril' (1998), acrescentando aqui mais solidez, há muito para refletir - também para rir claro está -, mais do que nos outros dois filmes.
'Il sol dell'avenire', Nanni Moretti (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas