DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 30 de abril de 2025

'O Azul do Cafetã', de Maryam Touzani: as mãos, outra vez


Mário Soares dizia que não sabia fazer nada com as mãos - talvez por se ter dedicado desde cedo aos livros, ao pensamento e à ação política, acima de tudo, investindo na construção da liberdade e da democracia para um povo que na sua grande maioria, em plena ditadura, dependia do trabalho de mãos para sobreviver. As mãos são a extensão da nossa mente; a grafologia estuda a personalidade através da escrita, melhor, da caligrafia. Há quem explore mais as mãos do que outros, é uma evidência. Todavia, nos tempos que agora vivemos, as mãos parecem cada vez mais um mero apêndice das novas tecnologias, para clicar e scrollar; criam muito menos do que alguma vez criaram. No cinema de Maryam Touzani, as mãos continuam a ser extensores nevrálgicos do cérebro, da mente, onde desaguam e se expressam (quase) todas as emoções, numa ancestralidade em contracorrente. Em 'Adam' (2019) - a primeira longa-metragem da realizadora marroquina - vimos as mãos como verdadeiras fontes geradoras de energia, num processo de criação, de vida e de novas vidas, partindo da farinha para chegar à massa e aos (diferentes) pães; entretanto, em 'O Azul do Cafetã' (2022) - segunda e, para já, última longa-metragem de Touzani - vemos as mãos como verdadeiros instrumentos de detalhe, que trabalham o pormenor, de modo subtil, com cuidado e delicadeza, redesenhando a vida, novas vidas, por meio do costurar e do tratar dos tecidos que vestem e embelezam as mulheres marroquinas: os cafetãs.


Na padaria (como constatámos em 'Adam') e no atelier de alfaiate (em 'O Azul do Cafetã') as máquinas não entram, tudo se faz com as mãos. "Halim não usa máquina de costura", diz Mina (a fabulosa Lubna Azabal, que já víramos no filme anterior de Touzani), mulher do alfaiate Halim (Saleh Bakri), a uma cliente que tenta apressar a entrega do cafetã. No lugar da maquinaria acrescenta-se mais um par de mãos para dar resposta às encomendas das mulheres sedentas por ornamentação - o jovem Youssef (Ayoub Missioui) junta-se ao casal no pequeno, velho e tradicional atelier. Eis o trio, ou melhor, o triângulo do filme. Mas não deixa de ser especialmente interessante o paradoxo que o cinema de Touzani expressa: por um lado, as mãos resistem estoica e orgulhosamente ao passar do tempo e às suas transformações, preservando a pureza da ancestralidade, mas, por outro lado, as cabeças (as mentes) aceitam contrariadas o anacronismo dos ditames da moralidade e da lei marroquina - em 'Adam',  a certa altura, as protagonistas desabafavam uma com a outra sobre as poucas coisas que pertencem às mulheres, incluindo na hora da morte de um ente querido; em 'O Azul do Cafetã', Mina barafusta com o polícia-fiscal que à noite na rua pede a respetiva documentação, sem nenhum motivo para tal. Esse  paradoxo sai ainda mais reforçado quando refletimos sobre a visão da autora, em ambos os filmes, na sua abordagem  - com implícita crítica à lei e moralidade marroquinas quanto aos direitos das mulheres e à criminalização da homossexualidade - aos temas da mãe solteira (em 'Adam') e do marido que é homossexual (em 'O Azul do Cafetã') e, simultaneamente, observamos o trabalhar de mãos, na massa e nos tecidos, nos respetivos filmes, como um modo de vida a preservar e a fazer perdurar no tempo, com brio, reforçado magneticamente por luminosidade, cor, brilho, delicadeza, por entre o cozer do pão e o coser do cafetã. Um paradoxo que poderíamos até desfazer, de forma poética ou mesmo utópica, se conseguíssemos filtrar o bem e expurgar o mal oriundos da ancestralidade; contudo, o bem e mal alimentam-se um do outro.


Assim como fizera em 'Adam', Touzani investe na solidariedade, num dar e receber recíproco, em diferentes momentos da vida, e de filme, como força motriz nas vidas entre pessoas. Em 'Adam', a viúva acolheu a mãe solteira; esta, por sua vez, devolveu-lhe a alegria de viver; e a viúva ajudou-a a querer e a ser mãe. Já em 'O Azul do Cafetã', Mina aceitou viver como esposa de um homossexual; o marido, Halim, cuidou dela afetuosamente na convalescença até à morte; e Mina generosamente foi cedendo o lugar dela na vida de Halim a Youssef. 'Adam' e 'O Azul do Cafetã' estão de tal forma incrustados um no outro, ambos frutos da câmara ao serviço da mesma sensibilidade e delicadeza, que conseguem tornar semelhantes os momentos iniciais de uma vida (do recém-nascido Adam com a mãe) com os momentos terminais de outra vida (de Mina com Halim). A impotência de Halim perante os gemidos de Mina lembra semelhante impotência face ao choro do bebé Adam; as mãos de Halim, que lavam os pés e os cabelos de Mina, que a vestem, que a transportam, que sentem o seu corpo, lembram as mãos da mãe que segura ao colo Adam, que lhe dá de mamar, que o embala - Touzani coloca-nos pacientemente perante fragilidades humanas que se assemelham, quando se nasce, quando se morre.


Em paralelo com a derradeira fase da vida de Mina, o belo cafetã azul é tratado e costurado a quatro mãos, de Halim e Youssef, num redesenhar da vida, uma nova vida, e não poderia haver destino mais poético para a morte do que vestir azul cor do mar com bordados cor de areia e seguir viagem rumo à praia, no horizonte, que um majestoso plano geral nos apresenta.


Le Bleu du Caftan, de Maryam Touzani (2022)

Visionado em Filmin Portugal



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'O Azul do Cafetã', de Maryam Touzani (2022)

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