DA VAGA DE SALA - Especial Festa do Cinema Francês

Stéphane Pires • 7 de outubro de 2024

'Sidonie no Japão', de Élise Girard: viagem do corpo e da alma


Paris, Barcelona, Roma ou Madrid. Foram viagens que recordo com entusiasmo, preenchimento e mundividência, mas foi mais a leste, em Varsóvia e em Riga, que senti efetivamente o transpor de uma barreira, como uma nova realidade, como uma outra dimensão. Nas capitais polaca e letã não existe um circuito montado para turistas - é até difícil descortiná-los -, submergimos naqueles lugares, com a língua deles, a comida deles, os hábitos deles, os maneirismos deles, a frieza e a indiferença (de grosso modo) deles. Sentimo-nos desterrados, fora de órbita, isolados, e privilegiadamente obrigados a criar o nosso próprio roteiro, mais ou menos ziguezagueante: e quão bom isso pode ser! Da viagem a Varsóvia, em 2015, ficar-me-á para sempre na memória aquela incursão ao Palácio da Cultura e da Ciência (construído nos anos 50 ao estilo de Estaline, que queria competir em altura com os arranha-céus dos americanos, um edifício da jocosamente apelidada arquitetura 'bolo de noiva', pelas suas diferentes camadas), primeiramente pela dificuldade em encontrar a porta de acesso - parecia só estar aos olhos de quem conhece -; de seguida pelo momento tenebroso no elevador que nos levou até ao topo do edifício, onde um velho sinistro, silencioso, de rosto impenetrável, curvado num banquinho, limitou-se a carregar no botão do último piso e, durante aquela tensa e demorada ascensão, manteve-se imóvel até ao término da sua tarefa, ou seja, despejar-nos lá em cima; por fim, após contemplarmos a vista sobre a cidade, dirigimo-nos ao bar, vazio por sinal, onde ecoava um hit das pistas de dança nos anos 90, Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop, de Scatman John, e sim, estava consumada a viagem no tempo, a mente fez o resto. Já em Riga (2019), nos dias que antecediam o Natal, dançamos e ensaiamos um cantarolar - sem perceber uma palavra que fosse - à volta de uma fogueira a celebrar o solstício de Inverno, uma tradição pagã. Do outro lado do mundo, após 11 horas de voo desde Paris, Sidonie (Isabelle Huppert) tinha à sua espera em Tóquio o seu editor, Kenzo Mizoguchi (Tsuyoshi Ihara), para partilhar com ela o seu Japão secreto, "um país de fantasmas", diz ele, em 'Sidonie no Japão' (2023) - ainda à procura de distribuidor em Portugal -, exibido este domingo à noite na Festa do Cinema Francês, com a presença de Élise Girard, a realizadora parisiense, antes assessora de imprensa de cinema, que se assume como uma fervorosa cinéfila que vê pelo menos um filme por dia, todos os dias.


Persuadida por uma carta escrita pelo sorumbático, taciturno e melancólico editor, para reedição do seu primeiro livro no Japão, Sidonie surpreende-se com a figura de Kenzo Mizoguchi (que não é parente do célebre realizador Kenji Mizoguchi), à chegada ao aeroporto, julgava que ele era mais velho. Não tendo nós tido acesso a essa carta, cabe pois ao filme, e ao seu decurso, consolidar essa construção imaginária de Sidonie. Sim, Kenzo é um homem fora deste tempo. É persistentemente cavalheiro - gera até alguns momentos cómicos com o transportar (dele) da mala de tiracolo de Sidonie -; abdica do controlo ou da vaidade perante os jornalistas nas entrevistas sobre o livro, mantendo-se à distância, solitário, nas diferentes ocasiões; privilegia a pausa, a quebra, a introspeção, o contacto com a natureza; ouve mais do que fala, mas quando fala transparece uma certa sabedoria dos sábios ancestrais. É pelas mãos deste homem que se veste de negro da cabeça aos pés - corpo e alma -, e vê o mundo como absurdo, que Sidonie, a pretexto da promoção do seu livro no Japão - sobre o qual sabemos apenas que foi escrito num período de dor após a perda trágica dos pais num acidente de viação, ela que mais tarde viria a enviuvar num outro acidente -, parte numa viagem do corpo e da alma. Uma viagem no tempo, sacralizado nos templos ancestrais de Quioto, de Budas e colunas vermelhas, e renovado na arte contemporânea, por meio de um cinzento que se prolonga no mar, da Ilha de Naoshima. Antiguidade e modernidade em comunhão com a vida e com a natureza, assim constatamos pelo que vemos e pelo que ouvimos: o verde da vegetação, o correr da água nos riachos, ou no mar, as folhas das árvores sacudidas pelo vento, a vocalização das aves (ouvidas na natureza e olhadas em gravuras numa exposição, facilmente vivem nos sonhos de Sidonie à noite). É entre um passado e um presente que quer virar futuro nesta viagem nipónica que Élise Girard decide injetar um quê de fantasia com a presença, com forma física ainda que sem consistência, como provou Sidonie, do marido defunto. Antoine (August Diehl) esperou pela ida de Sidonie ao Japão para aparecer, um fantasma num país de fantasmas. Há aqui qualquer coisa de 'Hiroshima Meu Amor' (1959), de Alain Resnais, incluindo a cena de projeção de fotografias, quase no final, dos corpos nus e entrelaçados de Sidonie e Kenzo, a arte do amor em vez da arte da guerra; isto apesar da realizadora, quando questionada sobre essa opção estética, ter dito que foi o seu lado púdico que determinou a forma de retratar a cena.


Nesta viagem metafísica, com lugar também para fantasmas, incluindo no banco de trás do carro onde se sentam Sidonie e Kenzo (e por vezes o defunto), um  espaço um tanto ou quanto celestial, quer pela colcha branca rendada onde se encostam os corpos, contrastando com o preto total da roupa de Kenzo, quer pelas projeções das imagens de exterior que vemos a passar no vidro de trás do carro - em mais uma fantasia de Girard -, sejam as estradas na urbe, sejam os campos primaveris onde as flores das cerejeiras já brotaram. Do carro celestial transitamos por vezes para o comboio - e comboio no Japão remeterá sempre para Ozu, e além das viagens deles no comboio vemos também o comboio a passar num plano de paisagem urbana; e ainda temos o whiskey sem gelo ao balcão, que embebeda Kenzo, que nos transporta para o imaginário desse mestre-maior do cinema japonês -, onde a câmara de Girard aproveita a boleia para os travellings laterais da paisagem, mais lentos ou mais rápidos, para contemplarmos enquanto seguimos viagem.


Aos poucos a figura do falecido Antoine vai ficando mais longe, mais difusa. Isto depois de já termos vivido a comicidade da sua presença perante os outros que não o viam, pois só os olhos e a mente de Sidonie lhe davam imagem e forma. E agora é a vez de Sidonie ver-se em duplicado, num espelho divido, entre o ficar e o seguir em frente, o passado e o presente-futuro, para depois, nos espelhos seguintes dos quartos de hotel - por onde ia ficando -, ver-se refletida numa só, fundida numa harmonia entre  a vida passada e a vida presente-futura.


Huppert não se cansa de fazer filmes. Girard disse-nos que quando Huppert leu o argumento ficou convencida de que Sidonie era Isabelle e Isabelle era Sidonie. Entre a comicidade, o inusitado, a leveza - como a vimos recentemente em A Traveler's Needs (2024), de Hong Sang-soo, no último IndieLisboa, e que aqui trouxemos num Especial DA VAGA DE SALA -, e o peso emocional do passado que carrega , assim vemos Sidonie, assim vemos Huppert. Mas se Huppert é uma autêntica catedrática do cinema, Girard vai apenas na sua terceira longa-metragem  - não conheço os seus filmes anteriores, ainda - e é deveras impressionante a extrema beleza com que concebe este filme. Quando a questionei sobre a influência das paisagens arquitetónica e natural na narrativa e nas personagens, a cineasta não escondeu o seu fascínio pela arquitetura e por uma certa geometria arquitetónica do Japão, realçando a facilidade que tal promove para boas filmagens. Bom, diria que além disso e mais importante do que isso é saber colocar a câmara no sítio certo, e com os movimentos dotados de sentido para a narrativa - e Girard fê-lo de forma exímia, alternando planos fixos com as suaves e ternas panorâmicas. A gestão do som, entre diálogos, silêncio, ruídos da natureza e a composição musical de Gérard Massini, comungando na perfeição, eleva o filme para um patamar de excelência estética. Seguiremos de perto Élise Girard, definitivamente.


Sidonie au Japon, de Élise Girard (2023)

Visionado na Festa do Cinema Francês, Cinema São Jorge

'Sidonie no Japão', de Élise Girard (2024)

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