DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'À Procura de Elly', de Asghar Farhadi: um final amargo é melhor do que uma amargura sem fim
"Os jogos de linguagem são formas de vida. No jogo há regras, a interpretação das regras pelos protagonistas, e há uma intenção de vitória e também lúcida. A ligação intrínseca entre jogo e linguagem, vida e mundo, é feita através da conceção da forma da regra e da sua aplicação às condições existenciais", lemos nas reflexões feitas no livro 'O QUE É A FILOSOFIA?', em torno de 'Investigações Filosóficas', no capítulo dedicado a Wittgenstein. Nos filmes de Asghar Farhadi (escolha para Fevereiro DA VAGA REALIZADOR DO MÊS), os jogos de linguagem, de que fala Wittgenstein, são vastos e determinantes na(s) resposta(s) a um acontecimento que marca, muitas vezes com contornos de tragédia (acidente, desaparecimento, agressão…), as vidas das pessoas nas histórias que nos conta. Em 'À Procura de Elly' (2009) vivemos alguns dos jogos de linguagem que Wittgenstein refere na sua obra: relatar um acontecimento; fazer suposições sobre o acontecimento; pôr uma hipótese e testá-la; cantar à roda; adivinhar um enigma. E não deixa de ser curioso que, ainda antes do acontecimento trágico que marca a história, vejamos o tradicional jogo da mímica (apenas através de gestos, cada jogador descreve um objeto que tem de ser adivinhado pela plateia), como que antecedendo o jogo real de um enigma, por desvendar e desconstruir, que todos terão pela frente.
Elly (Taraneh Alidoosti), antes de dar corpo ao enigma, é professora da filha de Sepideh (a fabulosa Golshifteh Farahani) e é convidada por esta para rumar numa 'escapadinha' de três dias ao Mar Cáspio, juntamente com três casais, crianças, e um recém-divorciado, Ahmad (Shahab Hosseini), emigrado na Alemanha, mas de visita fugaz ao Irão. Ahmad é deveras acarinhado pelos três casais, todos amigos e ex-colegas de universidade, especialmente por Sepideh, cuja afinidade é bem evidente, e nem o facto de ser casada, com Amir (Mani Haghighi), inibe Farhadi de nos mostrar que, mesmo numa sociedade controlada e manietada por uma teocracia ultra-conservadora, continua a existir espaço para um certo liberalismo comportamental, especialmente numa geração instruída de Teerão; e quem melhor do que a universal Golshifteh Farahani para dar corpo a esse manifesto. Essa é também uma marca indelével no cinema de Farhadi (ele que recusa ver o seu cinema como um instrumento político), ou seja, sem ir diretamente ao choque e ao confronto com o conservadorismo religioso (e moral) vigente no Estado Iraniano - como outros conterrâneos seus, Jafar Panahi à cabeça, com as consequências que se conhecem -, vai conseguindo passar e deixar a sua mensagem por uma sociedade mais liberal, apontando para a necessidade de um equilíbrio entre tradição e modernidade, apresentando a moderação como rutura possível. Interessante presenciarmos, em dois momentos diferentes do filme, o grupo de amigos a recorrer a votações para decidir o que fazer, de acordo com a maioria: uma clara demonstração de ânsia por democracia.
Rapidamente ficamos a saber que Sepideh trouxe Elly para congeminar um novo casamento para Ahmad, depois do divórcio dele com uma alemã. A ideia vinga no grupo, todos ávidos por ver o amigo também casado como os restantes; a ideia vinga na responsável das villas (casas de férias) que, após Sepideh - numa de muitas mentiras suas - lhe dizer que havia um recém-casal, aprontou-se a conseguir uma villa, ainda que degradada e ao abandono, para acolhê-los durante os três dias; a ideia vinga em Ahmad, que, só mais à frente percebemos, nós e o restante grupo, já conhecia Elly de uma foto enviada por Sepideh, após este lhe ter pedido ajuda no 'arranjar' de um casamento; e começa a vingar em Elly, ainda que a vejamos alternar entre a proximidade com Ahmad e a ânsia de partir dali, antes mesmo que o golpe, que imaginamos poder acontecer e fazer sangue na troca de vidros por uma janela, de vidro também partido, entre ambos, nas arrumações da villa, se materialize e se abra a ferida.
E dos gritos extasiados pela folia, que vemos nos rostos de Sepideh e Ahmad com as cabeças fora das janelas do carro no túnel escuro, logo a abrir o filme, saltamos mais à frente para os gritos desregulados pelo desespero, antecedidos imediatamente pelo aumentar súbito do barulho do mar (em frente à villa) e pelo estrondo de uma bola perdida que bate em casa, após um serviço no jogo de vólei que os homens estavam a fazer. Num momento que podemos apelidar de clímax estético do filme, a câmara agita-se, fica brusca, irrequieta, entra no mar, oscila nas ondas, fica à tona da água e depois entra dentro dela: a villa à beira-mar vira estado de sítio, primeiro para o resgate bem sucedido de Arash, filho de Peyman (Peyman Maadi) e Shohreh (Merila Zare'i), depois para o resgate fracassado de Elly. O estado de sítio vira depois estado de desgraça, e o mar ali continua, impactante, a fazer-se ouvir e a fazer-se ver, perante a impotência dos demais.
A partir do momento trágico, os jogos de linguagem começam a emergir, visando o desvendar do enigma, um enigma chamado Elly. As crianças, as únicas que presenciaram o sucedido, relatam o acontecimento, condicionadas pelas tenras idades, pelo trauma que sofreram, pelas perguntas, orientações e conclusões dos adultos; os adultos, esses, fazem suposições sobre o acontecimento, dividindo-se entre o afogamento ou a partida/fuga voluntária (da villa); no afogamento, resta-lhes apenas responsabilidade e peso de consciência: afinal foi Sepideh que insistiu em trazer Elly, foi Sepideh quem impediu que ela partisse, a morte ter-se-á dado no socorro a Arash, Elly era a única adulta a vigiar as crianças no mar; já na partida/fuga voluntária, está o desejo (Elly estaria viva) e a conveniência (sem responsabilidades, seria apenas seguir em frente); os adultos colocam uma hipótese (a partida voluntária de Elly) e testam (telefonando para casa da mãe), mas antes do teste, trabalham na consolidação da hipótese formulada, refazendo memórias e recuperando falas - o que se disse a Elly; como se disse a Elly; os cânticos de Inshallah aos 'noivos' e o ulular como rito de matrimónio; o que disse Elly; o que Sepideh (a chave, de certa forma, para o enigma) diz e omite, e vai desvendando a conta-gotas - para construírem um padrão moral de Elly, que depois possa ter, ou não, repercussão no comportamento.
Quando os restantes ficam a saber da existência do noivo de Elly, e da sua vinda à villa, a moralidade, ou neste caso, a pressuposta imoralidade de Elly, pesa no juízo que o grupo faz sobre ela, sobre o seu padrão moral, fracionando-o (o grupo), mesmo depois de votação, divididos entre a vontade de seguir em frente, suportada pela (pressuposta) imoralidade de Elly, e entre a preservação da verdade, e, ao mesmo tempo, da honra de Elly. "A honra é importante para os mortos?", alguém questiona. Talvez a melhor resposta a isso e ao próprio filme tenha sido dada, ainda na fase inicial, em alemão, quando Ahmad verbalizou a Elly a despedida protagonizada pela sua ex-mulher: "Um final amargo é melhor do que uma amargura sem fim".
About Elly, de Asghar Farhadi (2009)
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'À Procura de Elly', de Asghar Farhadi (2009)