Safe Place, de Juraj Lerotic: reflexo de fatalidade, desespero e frieza
Talvez o instante da morte não seja mais do que um apagar de luz antecedido por um clarão ou flash branco com movimentos desconexos e sonorizado por um ruído de fundo a remeter para o descolar de um avião. A morte faz parte da natureza e do ciclo da vida. Ao ver Safe Place (2022) ['Lugar Seguro'] - vencedor do Grande Prémio de Longa-Metragem Cidade de Lisboa do IndieLisboa 2023 -, de Juraj Lerotic, fui transportado para o derradeiro filme de Chantal Akerman, No Home Movie (2015): ambos recorrem à natureza, pelas árvores, pelas plantas, pelos parques, pelas colinas, para nos mostrarem que a morte se dá na vida, por meio dela; e ambos transitam a vida para a morte por esse clarão / flash branco revestido de ruído (em Safe Place ouvimos dizer que a audição é o último sentido a perder-se). No filme-despedida de Akerman já só vemos a inevitabilidade; no filme-estreia de Lerotic assistimos à fatalidade, e ao seu caminho, acompanhada pelo desespero contido de uns e pela frieza sistémica de outros.
No longo plano de abertura, de câmara fixa, conseguimos percecionar um apagar de luz associado à morte no meio da vida. Vemos duas crianças a brincarem com uma bola luminosa à entrada dos prédios, onde as árvores parecem crescer coladas às casas, onde um cão passa, onde uma mulher parte e um homem chega: só quando as duas crianças saem de campo, levando com elas a luz da vida, é que surge em corrida desenfreada, rumo ao prédio, Bruno (o próprio realizador Juraj Lerotic dá corpo à personagem, ele que se inspirou na sua própria experiência com a morte recente do irmão) para socorrer o irmão Damir (Goran Markovic) após tentativa de suicídio. Numa missão desesperada, mas lúcida, para ajudar o irmão, Bruno vai enfrentando a frieza de bombeiros, de médicos e de polícias, numa frieza sistémica orientada para o cumprir de procedimentos ou regras e o preenchimento de relatórios; a empatia com quem sofre é descurada, não faz parte das competências destes agentes da sociedade - o que resta e importa é a ocorrência, os factos, a intervenção, a espera e o veredito. Quem acompanha a vítima ou o acidentado é obrigado a colaborar para o desfecho burocrático, e está destinado a esperar nos corredores vazios e silenciosos. Vemos um plano no hospital, com um enquadramento sublime, em que Bruno está a falar com a psiquiatra no seu consultório e esta está de costas para ele, enquanto escreve aparentemente num computador que não vemos, voltando a cabeça para trás, de quando em vez, mas sem girar o corpo.
É num espaço temporal comprimido, em apenas um longo dia, que vamos assistindo à saga de Bruno, e ao seu amor incondicional pelo irmão, a que se junta depois a mãe (Snježana Sinovčić-Šiškov). Já com os três reunidos no hospital, assistimos do lado de cá do vidro da sala ao triângulo familiar, com Damir, que vemos de frente, com Bruno e a mãe, que vemos de costas; pelo meio, refletindo nesse mesmo vidro, vemos as enfermeiras que andam de um lado para o outro, mas que ali, aos nossos olhos, talvez já com os olhos de Damir, estas parecem hospedeiras de bordo antes da descolagem do avião, e cujo ruído que vamos ouvindo - que Damir naquele trecho onírico de conversa com o irmão se referia ao último ruído que ouviu antes da morte como sendo idêntico ao som do levantar voo de um avião - é similar e permanente; diga-se que esse ruído de fundo que sonoriza o silêncio no hospital parece ficar impregnado sempre por todo o filme, mesmo que ao ar livre ele ceda espaço a outros ruídos (da rua, da natureza), parece ser omnipresente. E aqui, e assim, percebe-se a opção pela ausência de música no filme: deste modo Lerotic consegue orientar-nos mais para a adrenalina do momento vivida pelos familiares - com tomadas de decisão, diligências - e para a própria insanidade de Damir, em detrimento de um explorar de emoções mais associadas à tristeza e à impotência. Ou seja, parece não haver espaço e tempo para lamentos e lamúrias; entre as portas estreitas e os corredores escuros de casa, com a polícia à perna, com Damir entre varandas e facas, resta a Bruno e à mãe raciocinarem, às vezes até com algum sentido de humor, condicionados claro está pela adrenalina, pelo cansaço, pelos Valium que também tomaram.
Numa clara opção estética e formal, Lerotic remete-nos em vários planos para as imagens dos rostos e dos corpos refletidas nos vidros, conseguindo mostrar mais pessoas em simultâneo, sem mover a câmara, e, ao mesmo tempo, reduzindo a nitidez, aumentando o desfoque, próprios do reflexo de uma imagem num vidro; talvez seja também assim que Damir esteja a ver o irmão, a mãe e todos os outros neste momento, como uma espécie de fantasmas, assim nos parece, também, a figura de Bruno refletida na portada da varanda, atrás de Damir, enquanto este fuma compassadamente. Mas Bruno também nos parece a certa altura um elemento do pessoal médico, quando troca a posição da t-shirt branca ensanguentada no corpo, às avessas, e esta sobe no pescoço, assemelhando-se ao uniforme clínico.
Já fora do primeiro hospital e já depois da viagem dos três desde a capital Zagreb para a terra-natal Split, Damir desaparece, levando Bruno e a mãe aos limites. E é nesse vasculhar por Damir que Bruno decide procurá-lo num complexo de prédios inacabados, blocos grafitados, aparentemente de construção parada, onde um barco está atracado, não se sabe porquê. Durante alguns minutos, a câmara estaciona neste cenário, onde vemos ao longe Bruno preso neste labirinto físico e mental. Mais tarde, quando a mãe lhe pergunta porque ali foi procurar o irmão, Bruno diz-lhe que seria o local que ele próprio escolheria para saltar. Haverá melhor ou pior lugar, mais ou menos indicado, para quem decide morrer? Não há respostas, e de Damir também não virão, por mais que Bruno tente entender, confortar e dar-se ao irmão.
E sem nunca pré-anunciar, a caminho do fim, o filme surpreende-nos com os movimentos bruscos do corpo rumo à libertação, a força do grito que quebra o controlo, e a agitação total da câmara.
Safe Place, de Juraj Lerotic (2022)
Visionado em Filmin Portugal
'Safe Place', de Juraj Lerotic (2022)