'Folhas Caídas', de Aki Kaurismäki: passado cristalizado no presente
Não fossem as constantes notícias da guerra na Ucrânia, que vamos ouvindo sempre que o velho rádio de antena é ligado no filme, e não situaríamos 'Folhas Caídas' (2023), de Aki Kaurismäki, como uma história que decorre nos dias de hoje. Mas não deveria também a guerra ser um acontecimento do passado? Não deveria ter congelado para sempre com o fim da Guerra Fria (nos primórdios de Kaurismäki)? Sim, deveria, mas o passado virou presente e o presente virou passado. E o trabalho? Mais de 30 anos volvidos após a queda do muro de Berlim e, praticamente em simultâneo, o fim da trilogia do proletariado, ou dos trabalhadores (que tem agora com 'Folhas Caídas' um complemento) de Kaurismäki - 'Sombras no Paraíso' (1986); 'Ariel' (1988); 'A Rapariga da Fábrica de Fósforos' (1990) - e continuamos com precariedade laboral: trabalhadores a prestarem serviços efetivos, muitas vezes ao longo de anos e décadas, mas reconhecidos contratualmente como temporários ou como efetivos de entidades (melhor, barrigas de aluguer ou testas de ferro) que cedem trabalhadores à empresa-mãe, onde e para quem realmente se trabalha; desproteção social; trabalho ilegal; alojamentos pré-fabricados, armazéns ou contentores onde trabalhadores se acumulam ou encaixam como mercadoria. Deveria ser passado? Sim, mas o passado virou presente e o presente virou passado. E se paz e bem-estar não são garantias no presente, porque não usar o poder do cinema para cristalizar o resto do passado - da era pré-digital - nas pessoas, nos lugares, nos seus encontros, nos seus propósitos. Assim faz Kaurismäki, assim é 'Folhas Caídas'.
Nesse processo de cristalização do passado no presente vemos o mesmo camião azul de marca Scania, usado na recolha de lixo de Nikander em 'Sombras no Paraíso', agora no estaleiro metalúrgico onde trabalha Holappa (Jussi Vatanen) que, tal como Nikander, não usa nem pronuncia o seu nome próprio, numa despersonalização que ambos parecem cultivar; vemos também o mesmo vermelho na farda de Ansa (Alma Poysti), também ela operadora de caixa de supermercado, como Ilona em 'Sombras no Paraíso'. Continua a predominar a arquitetura brutalista de paredes em tijolo maciço nas ruas de Helsínquia, no estaleiro, e até dentro do bar California Pub, para onde Ansa vai trabalhar - após despedimento no supermercado, tal como llona -, um verdadeiro templo de almas e olhares perdidos no tempo que vemos lentamente a entrarem na imagem após um travelling para trás que a câmara faz a partir da jukebox que ecoa o clássico Hey Mambo - completamente inusitado perante clientela tão estacionária - até chegar à mulher que fuma atrás do balcão. Também se dança apenas na imaginação porque também se pode viver, e muito, na imaginação; e vendo os sucessivos planos de Ansa, solitária, sentada de olhar perdido no banco do elétrico, lembrei-me do que o pai de Mia Hansen-Løve, segundo ela, lhe dizia sobre o não estar a fazer nada: "o tédio traz a imaginação". Ansa viaja com o tédio, Holappa mergulha no álcool; ela quer avançar, ele prefere estagnar; Ansa parte no elétrico, Holappa fica na paragem. Ainda no California Pub dá-se uma cena que é um completo déjà vu de uma cena de 'Ariel', quer na narrativa, quer na estética: o dono do California Pub tal como a dona dos cargueiros em 'Ariel' (ambos com trabalhadores ilegais, sem contrato) são detidos pela polícia, enquanto a plateia (trabalhadores e outros) assiste.
Kaurismäki decide entregar ao cinema, ao poder da sua intemporalidade, e ao seu poder intemporal - tal como fizeram, também em 2023, Nanni Moretti, em 'O Sol do Futuro' (o poder de reescrever a História), e Victor Erice, em 'Fechar os Olhos' (o poder único de espoletar emoções) - o papel maior enquanto símbolo desta diluição passado-presente, em várias facetas, digamos assim. Faz dele (do cinema) também o espaço físico do primeiro programa dos pretendentes Ansa e Holappa - isto após um café onde o tempo (meteorológico) foi o único e possível tema de conversa para os sempre rígidos, e comedidos em palavras, pares de Kaurismäki - que, num cinema coberto por posters de clássicos de Bresson, Godard ou Lang, sentam-se a ver Adam Driver a matar zombies no recente 'Os Mortos Não Morrem' (2019), de Jim Jarmusch, como se estivessem a viajar no tempo, a um futuro, através do cinema. Ansa e Holappa são clássicos, vivem no presente, mas com características do passado; mas também são uma espécie de zombies neste presente. E já desencontrados, ao olharem à vez, em momentos diferentes, para o poster de Pierrot Le Fou (1965), de Godard, no mesmo cinema Ritz, terão ambos, ou algum deles, pensado na (ou imaginando a) história de Ferdinand e Marianne? Talvez sim, talvez não, pouco importa, o poder do cinema é também e muito pôr-nos a imaginar; tal como o poder do encontro, do desencontro e do reencontro, imaginário ou real, na tela ou no cinema enquanto espaço físico, mesmo que seja à porta (essa magia cada vez mais perdida no passado).
Em 'Folhas Caídas', assim como nos anteriores filmes da trilogia, Kaurismäki mantém-se fiel à ideia romântica (da era pré-digital) do acaso no primeiro encontro e até de um esbarrar fatalmente para um segundo encontro. E se é verdade que neste filme já vemos o uso do telemóvel, este surge ainda como um (último) recurso, sendo-lhe reservado apenas a função do telefone fixo: telefonar, só. Não é usado para SMS, redes sociais ou quaisquer scrolls, até porque ambos, o dele e o dela, ainda contemplam as teclas (a cedência de Kaurismäki ao presente é feita ao seu ritmo, o tempo dele). Li numa entrevista recente que o último filme visto numa sala de cinema por este mestre finlandês foi 'A Mulher do Aviador', em 1986, de Éric Rohmer. O amor pelo acaso só pode ser um amor de ambos. No final, fica a sensação de que Kaurismäki não fez melhor com 'Folhas Caídas' do que em 'Sombras no Paraíso' (o meu preferido), em 'Ariel' ou em 'A Rapariga da Fábrica de Fósforos', mas fica também a certeza de que continua a fazer bem, não abdicando por nada do seu cunho (diferenciador) identitário.
Kuolleet lehdet, de Aki Kaurismäki (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas
'Folhas Caídas', de Aki Kaurismäki (2023)