DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 24 de janeiro de 2024

'Maya', de Mia Hansen-Løve: o bálsamo para sarar as feridas


Autêntica mestre a trabalhar a passagem do tempo nos seus filmes, Mia Hansen-Løve apresenta-nos em 'Maya' (2018) uma versão de temporalidade mais reduzida, compactada, como uma receita terapêutica prescrita para alguns meses, neste caso autoprescrita pelo protagonista, Gabriel (Roman Kolinka, que fora Cyril em 'Éden' [2014] e Fabien em 'O Que Está Por Vir' [2016]). Se em 'Éden' e em 'O Que Está Por Vir' vimos Paul e Nathalie, respetivamente, sentirem o impacto da passagem do tempo nas suas vidas, manietados e marcados de certo modo pela sua inevitabilidade, e a precisarem de reagir, já em 'Maya', Gabriel chama o tempo a si, para usá-lo, em vez de ser usado por ele, para que este (o tempo) lhe devolva o agir: curando, regenerando, recentrando, prosseguindo. O plano inaugural de 'Maya' mostra-nos o hematoma no corpo de Gabriel - há feridas para sarar, resta agora encontrar, com o tempo e a sua passagem, o bálsamo certo.


À semelhança do que fez em 'Éden', com o surgimento e ascensão dos Daft Punk, e em 'O Que Está Por Vir', com as manifestações contra o aumento da idade da reforma, ainda na presidência de Sarkozy, Mia Hansen-Løve volta a trazer para os seus filmes um episódio da realidade francesa como pano de fundo, desta feita, assistimos a uma recriação inspirada na história dos jornalistas que foram feitos reféns na guerra da Síria e posteriormente libertados, à época era François Hollande o presidente da república. Em 'Maya', Gabriel e o colega e amigo Frédéric (Alex Descas) foram resgatados pelo governo francês, mas um outro colega deles acabou por ficar em cativeiro na Síria. Em resposta ao trauma de quatro meses de aprisionamento, Gabriel troca a terapia com psiquiatra e a Paris do pai e da ex-namorada - que, posto isto, quer voltar a ser (namorada) - por um regresso à Índia, a Goa, onde passou a infância antes do divórcio dos pais e onde ainda resiste uma velha casa. Esta escolha autoterapêutica de Gabriel, de voltar a sair de França, de procurar contacto com novas experiências e uma outra cultura, de buscar aventura e liberdade por entre a solidão, revela, uma vez mais, a linearidade que Mia entrega sempre à passagem do tempo, rejeitando as ruturas abruptas no ser e no viver dos seus protagonistas; e para consolidar esta linearidade - com a vida de repórter de guerra de Gabriel - vemos até alguma adrenalina e perigo nesta terapia sabática indiana: acidente de mota, casa apedrejada, fogo ateado.


Do mesmo modo que Paul em 'Éden' e Nathalie em 'O Que Está Por Vir', Gabriel é um idealista, a sua vocação é o seu o ideal de vida e o seu ideal de vida é a sua vocação. O garage house produzido e tocado por Paul enquanto DJ; a filosofia, como ato de pensar em busca de conhecimento, ensinada aos alunos por Nathalie enquanto professora; e a guerra, no seu viver, presenciar, comunicar e denunciar por Gabriel enquanto jornalista são os princípios e os fins maiores de vida. "Sou um jornalista de guerra, essa é a minha vida", evoca Gabriel, em resposta a Maya (Asrshi Benerjee), a jovem indiana, filha de Monty (Pathi Aiyar), padrinho de Gabriel e amigo da mãe. Maya - cujo pai quer que vá estudar e viver para Sidney, mas ela é mais dada à indolência de Goa - tornar-se-á no bálsamo que Gabriel procura para sarar as feridas abertas, após uma busca iniciada a solo: nos mergulhos em mar agitado; de rosto dado ao vento (sem capacete a aprisionar) nos passeios de scooter pelas estradas selvagens; nas festas psicadélicas, onde Goa vira ocidental, o desfecho da noite é numa cabana e o acordar é de frente para o mar; entre comboios Índia adentro, de Goa a Mumbai, explorando e experimentando, sabores, saberes e cortes de barba à navalha; revendo a mãe, longos anos depois, num reencontro (possível) fustigado pela passagem do tempo.


É na harmonia entre a natureza, a arquitetura ancestral e a vida que Mia nos entrega os momentos mais poéticos do filme. Primeiro, recorrendo a mais uma das suas muitas panorâmicas, mormente suaves: a câmara parte do rosto de Maya, sentada à janela aberta de um templo, e move-se até encontrar Gabriel, do lado oposto, também à janela, fixando então, agora do lado dele, uma linha reta entre ambos, entre ambos os olhares. Sensibilidade e delicadeza, puras! Segundo, saídos do templo, em bicicletas, em mais uma suave panorâmica, Maya e Gabriel ouvem o chilrear e olham para cima, vendo então dois periquitos verdes naquilo que parece um ritual de acasalamento. E claro, depois disto, para que precisamos de diálogos? É caso para se dizer, vulgarmente, que as imagens falam por si.

E depois de Maya é possível voltar a sonhar, é possível acreditar de novo, é possível recomeçar.


Maya, de Mia Hansen-Løve (2018)

Visionado em Filmin Portugal

'Maya', de Mia Hansen-Løve (2018)

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