'Anatomia de Uma Queda', de Justine Triet: a vida de um casal em tribunal
O filme chama-se 'Anatomia de Uma Queda' (2023), mas convém lembrar que a realizadora Justine Triet não caiu agora e aqui de paraquedas. Talvez para que o seu cinema fosse mais levado a sério, Justine Triet resolve fazer uma filme mais sério, digamos assim, anulando uma certa faceta cómica presente nos seus filmes anteriores - Sibyl (2019), 'Na Cama com Victoria' (2016), 'A Batalha de Solferino' (2013), falando de longas-metragens apenas - que, para o bem e para o mal, dependendo sempre de pontos de vista, aligeirava o seu cinema. 'Anatomia de Uma Queda' é um filme sério e para ser levado a sério, porque é denso, porque problematiza, porque é um espelho bem construído de muitas coisas, condensando em si um upgrade evolutivo no cinema de Justine Triet - e aqui debruço-me mais no comparativo com 'Na Cama Com Victoria', que está mais fresco na memória do que Sybil, já 'A Batalha de Solferino' só conheço do que li sobre -, numa lógica de continuidade, e revestido, aos meus olhos, com camadas que me levam para 'Anatomia de Um Crime' (1959), de Otto Perminger; 'Cenas da Vida Conjugal' (1973), de Ingmar Bergman; e 'Força Maior' (2014), de Ruben Ostlund.
A germânica Sandra Hüller - que me fascinou em 'Nos Corredores' (2018), de Thomas Stuber - dá corpo e rosto a Sandra, uma alemã, escritora de romances, casada com um francês, professor e escritor falhado, Samuel (Samuel Theis), com quem vive num chalé perdido na neve dos Alpes, juntamente com o filho de ambos, Daniel (Milo Graner) e o cão Snoop. Sandra é uma versão mais maturada da mulher empoderada, bem sucedida no plano profissional e no reconhecimento associado, que Justine Triet apresentara anteriormente com a atriz Virginie Efira. Partilhando de certo modo das debilidades emocionais e afetivas de Victoria, de 'Na Cama com Victoria', Sandra aparenta um controlo de emoções mais sofisticado, refletido, ou disfarçado, mais naturalmente no seu rosto, seja de rosto fechado, seja abrindo e mostrando o seu sorriso sedutor. Victoria despacha processos vorazmente enquanto advogada, Sandra publica livros em catadupa enquanto escritora; as duas filhas de Victoria, e Daniel, o filho de Sandra, todos parecem experimentar um alheamento das respetivas mães nos seus dia-a-dia. Em ambos os filmes, a sala de audiências no tribunal é a arena - que Justine nos mostra frequentemente em planos gerais para conseguirmos olhar de frente para os juízes, ao fundo e no topo, e vermos, também, toda a composição da sala e assim sentirmos a tensão associada - onde as duas mulheres empoderadas, Victoria e Sandra, confrontam e são confrontadas; em ambos os filmes deparamo-nos com a fronteira ténue ou mesmo a ausência de delimitação entre a realidade das vidas e a ficção dos livros, onde as histórias reais e ficcionais são espelhos e reverberações, umas das outras; em ambos os filmes vemos o cão como personagem-testemunha-influenciador dos factos vividos nas vidas e debatidos em tribunal - inclusive, em 'Na Cama com Victoria', o cão, um dálmata, acaba mesmo por ser alvo de avaliação comportamental em pleno julgamento, num estilo-paródia que Justine já deixou de fora em 'Anatomia de Uma Queda'.
De 'Anatomia de Uma Queda'
para
'Anatomia de Um Crime'
parece ser um salto previsível que podemos dar entre anatomias, mas há uma diferença de base entre as duas obras. Apesar de ambos se entregarem exaustivamente à tarefa de escalpelizar um crime e chegar a um veredito final, o filme de
Otto Perminger é sobre justiça e tribunais, enquanto o filme de
Justine
é sobre casais e famílias; na anatomia de
Perminger
a estrela é o advogado, interpretado por James Stewart, na anatomia de
Justine
a estrela é a arguida, Sandra, e não o relativamente apagado Vincent (Swann Arlaud), o advogado dela. Ainda assim, 'Anatomia de Uma Queda'
entrega à justiça e aos tribunais tempo, bastante, e espaço para reconstituições, interrogatórios, testemunhos privilegiados de especialistas em diferentes áreas, indo à minúcia reconstitutiva e forense do crime, antes e durante o julgamento, não se limitando apenas em versar sobre descrição, análise, interpretações acerca de comportamentos, atitudes e caráter da vítima, o marido Samuel, e da arguida, suspeita de assassinato, Sandra. E aqui reside a proximidade entre o filme de
Justine
e o filme de
Perminger: um mostrar e detalhar dos meandros do funcionamento da justiça, da investigação ao julgamento, passando pela defesa e pela acusação. "Estou-me nas tintas para a realidade. Isto não é sobre verdade", diz a certa altura o advogado a Sandra, visando o foco dela para a estratégia a seguir, em
'Anatomia de Uma Queda'. "Tive de partir de súbito, fui atacado por um impulso irresistível", escreve num bilhete o absolvido réu ao advogado, fugindo sem pagar os honorários, e usando o mesmo argumento que lhe deu absolvição no julgamento, em
'Anatomia de um Crime'.
Estabelecidas as linhas estratégicas da acusação e da defesa, homicídio de Samuel por Sandra, e suicídio, respetivamente, após trabalho de investigação e chegados ao julgamento, importa, claro, conhecer melhor, e de mais perto, suspeita e vítima, bem como a sua dinâmica enquanto casal. No interrogatório ao psicanalista de Samuel vem à baila o acidente sofrido pelo filho Daniel, responsabilidade em certa parte de Samuel, e, definitivamente, um marco no esboroar compassado da relação de ambos, seja pelo sentimento de culpa dele, seja pelo acusar dela a ele, que ele sentia como estando sempre presente; e aqui, talvez também pela neve alpina em volta, e também pela similitude dos trechos de música a adensarem a fricção, eletrizando-a, lembrei-me de 'Força Maior', de Ruben Ostlund, e em como aquele momento da avalanche de neve a avançar para cima da família e a consequente fuga isolada do pai/marido leva a um afastamento e desconfiança crescentes e constantes do casal, talvez irreparáveis, como em 'Anatomia de Uma Queda'.
Apresentadas e defendidas as respetivas teses de homicídio e suicídio, por procurador do ministério público e advogado de defesa, escutamos uma fala de Sandra para o seu advogado, em que, aparentemente, Justine quis que apenas ele (o advogado) e nós (espectadores) ouvíssemos, apesar de não ser um sussurro: "Esse não era o Samuel", diz-lhe Sandra, após Vincent sustentar a tese do suicídio construindo um molde de personalidade (de Samuel) que se coadune com tal. E neste momento é Justine a mostrar-nos a sinceridade e honestidade de Sandra, rejeitando uma espécie de vale tudo para safar a pele. Finalmente, já com bastante tempo de salas, de audiência e de cinema, simultaneamente, Justine dá-nos por fim uma cena, a primeira e única, do casal, numa conversa que rapidamente descamba num lavar de roupa suja, de acusações mútuas, de culpas, mas sem desculpas, de egos em confronto, de estigmatizações, de vitimização, de rebaixamento, de raiva, de gritos, de um explodir que leva a violência verbal até à física, numa cena à la 'Cenas da Vida Conjugal' (1973), de Ingmar Bergman, e ao maior digladiar de um casal na história do cinema, entre Marianne e Johan, os inauditos Liv Ullmann e Erland Josephson. Este momento é o segundo clímax dos dois que o filme possui; o primeiro clímax é mesmo a cena inaugural em que vemos Sandra em conversa, tipo entrevista, com Zoé (Camile Rutherford) - percebemos depois tratar-se de uma jornalista - na sala, nos rés-do-chão de casa, e de repente começa a ecoar a música PIMP - numa versão instrumental, há também uma versão/remix de Snoop Dogg -, vinda de um dos pisos de cima da casa, onde o marido trabalha, que desconcentra, que atrapalha, que distrai, até impedir, o fluir da conversa de ambas. É um momento de frisson, que nos agarra, que nos mostra, pelo uso e escolha da música, que vem aí confronto, choque, contraste.
E por falar em Snoop Dogg, o cão, de nome também Snoop - nada é deixado ao acaso - é crucial para trazer a resposta ao 'porque', no desenrolar do julgamento. O pequeno Daniel, num segundo interrogatório, desafia o tribunal a responder ao 'porque' aconteceu (a morte), já que não consegue ter resposta ao 'como' aconteceu. Se no primeiro plano do filme vemos Snoop a trazer a bola das escadas que ligam os pisos da casa, entre a conversa de Sandra com Zoé e a música que o marido faz ecoar na coluna, e pouco depois vemo-lo a ajudar Daniel a passar numa ponte pedonal, o mesmo Snoop dá a Daniel a resposta que ele precisa sobre a mãe e, consequentemente, a resposta ao 'porque' que o tribunal precisa. No fim, Snoop só pode ser reconfortado com o abraço de Sandra.
Anatomie d'une Chute, de Justine Triet (2023)
Visionado na Sala do Cinema Ideal
'Anatomia de Uma Queda', de Justine Triet (2023)