DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 24 de fevereiro de 2024

'BAAN', de Leonor Teles: voyage por Lisbangkok


Provavelmente seduzida pela tentação de politizar o filme com um dos temas mais prementes da sociedade portuguesa (europeia, de um modo geral), a comunicação social foi-se referindo a BAAN (2023), a primeira longa-metragem de ficção de Leonor Teles (já bem reconhecida pelo seus trabalhos anteriores em curtas-metragens, documentário e/ou enquanto diretora de fotografia de outros filmes, como, por exemplo, o badalado díptico de João Canijo, 'Mal Viver' e 'Viver Mal', filmado naquela unidade hoteleira de Ofir onde já fui muito feliz numas férias de Verão), como sendo uma história que versa sobre o problema da habitação: escassez e preço elevado. Todavia, BAAN (palavra de origem tailandesa cujo significado em português é casa) extravasa muito para lá de um espaço circunscrito a quatro paredes e um teto. A baan de Leonor Teles é um espaço vital constituído por cidade, mais pessoas; revestida por paisagem urbana, mais atração, desejo, amor; decorada por luz, iluminação, cores, mais convivência, partilha, respeito; alicerçada em harmonia, multiculturalidade e inclusão; já o BAAN, filme, é uma viagem, ou voyage - do hit francês Voyage, Voyage (Desireless, 1986) que a certa altura ouvimos entoar - por uma Lisbangkok, assim resolvi denominar este espaço imagético de simbiose construído entre Lisboa e Banguecoque (Tailândia), ou Lisboa mais Banguecoque; uma viagem à procura de baan.


Leonor Teles entrega a El (Carolina Miragaia), assim se autodenomina - uma jovem taciturna, de personalidade bem vincada, com pouco filtro, a dar os primeiros passos como arquiteta em Lisboa -, a viagem emocional, mental, existencial e física em busca desse espaço lato, multidimensional, energético, a que se possa chamar de casa. "Tu fazes sentir-me em casa", ouve El da parte de Kay (Meghna Lall) - uma jovem canadiana de origem tailandesa a viver em Lisboa, por quem El se apaixona - nos instantes finais do filme. Esse sentirmo-nos em casa pode ser muito vasto, vivido em diferentes espaços, em diferentes momentos, mas não existe sem pessoas, ou a memória delas, na equação. Sentimo-nos em casa na casa de um amigo, pessoa amada ou familiar; sentimo-nos em casa num restaurante habitual; sentimo-nos em casa num jardim recorrente; sentimo-nos em casa na nossa cidade quando gostamos dela, da vida dela e de viver nela.


Pela arquitetura El pode pensar, desenhar, projetar a paisagem urbana da baan, a começar pelas bibliotecas que ela tanto almeja; pelas janelas e varandas de casa, pelos miradouros e colinas de Lisbangkok mira-se, olha-se e observa-se sobre a cidade, encontra-se harmonia entre as torres das Amoreiras e a King Power Mahanakhon (o edifício mais alto da Tailândia), no lusco-fusco da madrugada ou do pôr-do-sol; no escuro da noite, os néones e letreiros iluminam o caminho de El, substancialmente a vermelho - e o vermelho também transita para dentro de casa, na t-shirt, no alguidar, na vassoura, na parede, no calendário -, mas também a amarelo, com dizeres do Oriente, em Lisboa e em Banguecoque, ou seja, em Lisbangkok, onde a noite não dorme e a conveniência de poder comprar cigarros e beber uma cerveja está numa loja ao virar de cada esquina; a falta de romantização leva à infelicidade e ao individualismo, e El não sabe e não quer estar sozinha, quer atrair e ser atraída, desejar e ser desejada, amar e ser amada, "precisavas de atirar-te de cabeça?", diz-lhe ao telefone uma amiga a propósito da sua história com Kay, história essa que começou num lamber de gelado com desejo e vagar, e pela sua atração estética e/ou sensorial, e se foi dando por meio de sabores aos pauzinhos; e as pessoas que asseguram a conveniência das lojas, e as pessoas que entregam comida em casa, também vivem nesta Lisbangkok, onde há lugar para uma praça onde se ensaia o jogo de críquete; e há também a senhora brasileira do restaurante que no fim desenrasca um cigarro, e há a colega de casa de origem africana, que tirou história da arte e que serve às mesas enquanto espera ou desespera pela oportunidade.


E esta baan, que se procura entre sufoco e profundezas, precisa de ser protegida. Racismo, xenofobia, capitalismo selvagem, desregulado, são fatores agressores, que El e nós vemos e ouvimos, nas mercearias, nas notícias da televisão, nos projetos desumanizados de desenvolvimento tecnológico. A viagem de El é uma busca diária e permanente.


BAAN, de Leonor Teles (2023)

Visionado na Sala do Cinema Ideal

'Baan', de Leonor Teles (2023)

Compartilhar

'A Vida Luminosa'
Por Stéphane Pires 29 de junho de 2025
'A Vida Luminosa', de João Rosas: da magia da sala escura até à beleza dos cemitérios
'Roleta Chinesa'
Por Stéphane Pires 26 de junho de 2025
'Roleta Chinesa', de Rainer Fassbinder: jogo de espelhos
'Mamã Küsters Vai para o Céu'
Por Stéphane Pires 17 de junho de 2025
'Mamã Küsters Vai para o Céu', de Rainer Fassbinder: vítima de pragmatismo amoral e niilismo
Mais Posts