'O Vendedor', de Asghar Farhadi: da autocensura à justiça da vingança
Depois de manter-se fiel ao seu cunho identitário de abrir o filme com os créditos a surgirem numa cena inicial que nos projeta para o filme propriamente dito e sobre a qual ficamos a pensar, refletir, imaginar, enquadrar e associar, durante e após o término do mesmo (o filme), em 'O Vendedor' (2016), Asghar Farhadi parece querer surpreender-nos, logo de seguida, quando nos apresenta o caos e o rebuliço, próprios de uma evacuação de um prédio a ruir, como cena inaugural com as personagens. Falso alarme: o prédio está a ruir, sim, os moradores são forçados a mudar de casa, mas não é este ainda o acontecimento (trágico) que, na linha do tal rígido cunho identitário de Farhadi - e não há mal nenhum nisso, pelo contrário, até aprecio -, acontece sempre, em todos os filmes, mas só após uma fase introdutória em que ficamos a conhecer os protagonistas e a sua história, o quanto baste. Um pouco à semelhança de Ozu e de Kaurismaki, também Farhadi não teme e não foge à previsibilidade, aos lugares-comuns ou à sensação de déjà-vu no seu cinema. E não será esta a disposição mais pura e verdadeira, mais real e realista, de um autor enquanto ser, de quem quer fazer-se sentir? Diria que sim.
A cena de abertura dos créditos iniciais de 'O Vendedor' começa no focar literal da luz para uma cama de casal meio desfeita, transita de seguida para a sala de estar, com sofá e mesa, prossegue para duas camas de solteiro e termina com um plano geral do cenário da peça de teatro ('Morte de um Caixeiro-Viajante', de Arthur Miller) que atravessará todo o filme, e da qual faz parte o casal protagonista: Rana (Taraneh Alidoosti) e Emad (Shahab Hosseini). Terminado o filme, aquela primeira cama remexida remete-nos para os encontros íntimos (com vários homens) da antiga inquilina da nova casa de Rana e Emad - alugada por Babak (Babak Karimi), colega no teatro, após a mudança forçada do prédio que ruiu, mostrando, e ao mesmo tempo anunciando, fissuras, agora nas paredes, depois na vida do casal -; a mudança do foco de luz da referida cama para a sala de estar representa a passagem do mal provocado por um dos antigos clientes, da tal ex-moradora que nunca conhecemos, a Rana - o acontecimento trágico do filme - para o mal-estar entre ela (Rana) e o marido, até uma presumível separação no final, seguindo o terceiro deslocar de foco da luz, para as duas camas de solteiro, separadas, que vemos no cenário da peça teatral. Peça essa que ficamos a saber, a certa altura numa conversa entre Rana e Emad, que é alvo de crivo da censura (do regime teocrático dos Ayatollah), visando a salvaguarda da moral e dos bons costumes.
Se no teatro há censura à arte, na vida real assistimos a uma espécie de autocensura de Rana, que, perante a agressão de que foi alvo em casa, enquanto tomava banho, recusa-se a apresentar denúncia na polícia. Obviamente não é alheio a esta autocensura de Rana o facto de se tratar de uma agressão de cariz sexual, cujos contornos nunca chegamos a saber com exatidão. Rana não quer expor-se, quer preservar a sua intimidade. Aqui Farhadi evidencia que, mesmo tratando-se de uma representante de um setor mais liberal e intelectual da sociedade iraniana, uma atriz, é extremamente complexo - seria sempre, para qualquer mulher, em qualquer sociedade de um país democrático, por mais aberta e sensível que seja ao combate à violência contra as mulheres - expor o tema perante a justiça. Esta autocensura de Rana parece mesmo ser o caminho que defende Emad, por mais que ele lhe fale da necessidade de apresentar queixa na polícia. Deste modo, Emad terá caminho livre para executar a justiça pelas suas mãos - longe da máquina burocrática de polícia e tribunais -, uma justiça da vingança, visando a humilhação (pública) do agressor, dando seguimento ao comentário da vizinha que lhe ficou na retina.
Após a agressão, o trauma (psicológico) instala-se em Rana, para quem a casa ganhou um potencial maléfico, especialmente a casa de banho. Esse potencial maléfico que Rana sente assemelha-se ao medo do escuro de uma criança, e, numa cena, vemos mesmo ela e o pequeno filho de uma colega do teatro, ao seu cuidado naquela noite, perante a tenebrosa casa de banho. Esse potencial maléfico passa também para nós (espectadores), mais do que nos anteriores 'À Procura de Elly' (2009) e 'Uma Separação' (2011), porque o agressor não tem rosto, não conhecemos, e, evidentemente, tememos sempre mais o desconhecido do que o conhecido. E recorrendo a um dos seus habituais jogos de linguagem, na padaria onde Emad vai em busca do agressor, a câmara mostra, à vez, vários rostos diferentes. Quem será? Decifremos o enigma. Não é nenhum deles. Mas tal como a peça tem um caixeiro-viajante, aqui, na vida real, há um vendedor ambulante, com uma carinha de caixa, e será a carrinha a levar o agressor até à justiça de Emad. O agressor é afinal de contas um velho, aparentemente indefeso, doente, cansado, agora perante um Emad que incorpora a figura de sentenciador da justiça dos homens e da justiça divina. O descalçar forçado do velho entrega a prova material do crime: o sangue estampado na ligadura do pé, o mesmo sangue que Emad esfregara vigorosamente para limpar e apagar nas escadas do prédio. Emad quer a confissão e a humilhação, em vez do perdão. Rana, a vítima, destoa da vontade do marido.
O dilema abate-se sobre o sentenciador, o teatro parece agora ter agarrado o filme e assistimos a uma espécie de teatralização do veredito final - entre choros, gritos, rezas, caminhares lentos, como quem segue para o cadafalso, o voltar atrás, a porta que se fecha, a bofetada - que nos deixa em suspenso, tal como a Rana, e aos três familiares do agressor, que vieram em seu socorro. Absolvição ou condenação? Cabe a Emad, no auge do poder que resgatou para si, decidir.
'The Salesman', de Asghar Farhadi (2016)
Visionado em Filmin Portugal
'O Vendedor', de Asghar Farhadi (2016)