DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 29 de fevereiro de 2024

'A Sala de Professores', de Ilker Çatak: receita de bullying com todos


"Gosto de ter conseguido fazer um filme inquietante mas, por outro lado, quis que tivesse uma data de momentos cómicos...É importante que as pessoas tenham pausas para rir", disse o alemão Ilker Çatak, em entrevista recente ao Diário de Notícias (DN), a propósito do seu filme-sensação 'A Sala de Professores' (2023). Pois bem, mais do que nos inquietar, agride-nos, diria, quase de início ao fim; já quanto às pausas, nem vê-las, muito menos para rir. Çatak apresenta-nos uma avalanche de acontecimentos em catadupa, em modo rolo compressor, circunscrita ao interior sufocante das paredes de uma escola, num frenesim constante, agudizado pela câmara que, além de querer acompanhar todos os movimentos das personagens, força, ela própria, por vezes, o movimento, movendo-se bruscamente, em sequência, entre os interlocutores (estáticos) que conversam; atordoados, desconcentrados, e inocuamente desarranjados pela batida da música frequente, de volume instável, com um (des)arranjo metálico, que nos quer levar corredores afora para algum lugar ou momento, que não chega a ser nenhum - assim ficamos.


Depois de ter visto recentemente 'As Ervas Secas' (2023), último filme de Nuri Bilge Ceylan, e que por aqui passou em DA VAGA DE SALA, fica bem patente a destrinça entre um filme que inquieta e um filme que agride, debruçando-se ambos sobre o tema da escola: das relações entre professores e alunos, da gestão de conflitos ou incidentes. Ceylan, em 'As Ervas Secas', mostra, mas não empola, ao contrário de Çatak, em 'A Sala de Professores'. Ceylan inquieta ao colocar-nos perante a sedução (proibida) entre o professor Samet (com a sua complexa personalidade) e a jovem aluna Semit, nas profundezas da Anatólia, na Turquia, mas confere-nos o espaço e o tempo para respirarmos, refletirmos, conhecermos o contexto social, cultural, intelectual, mundano, quer do protagonista - que em ambos os filmes são professores -, quer da comunidade onde a escola existe, ou seja, dá-nos suporte e verosimilhança. Por seu lado, Çatak agride ao fechar-nos no seu mundo-escola, sonorizado pela batida cardíaca acelerada e instrumentalizada, em cima de ruído de fundo de professores, de barulho dos alunos, de gritaria, de toques de telemóvel, ou de conversas interrompidas; afasta-nos de informação/conhecimento à priori fora de muros; arrasta-nos de mãos dadas com a professora Carla Nowak (Leonie Bnesch) - num desempenho notável e irrepreensível - , uma novata naquela escola algures na Alemanha, numa deriva rumo à inconsequência, ao fracasso e ao desespero (que ela tenta controlar a todo o custo).


Uma vaga de assaltos na escola da professora Carla Nowak tem vindo a 'justificar' a política de tolerância zero levada a cabo pela direção, intensificando as revistas (voluntárias, mas...) às carteiras dos alunos e, ao mesmo tempo, pressionando alguns miúdos para denunciarem outros. A professora Nowak está longe de concordar com esta visão securitária e de caça-às-bruxas, ou melhor, aos alunos, extravasando a discordância e a incredulidade no seu rosto, porém, está praticamente isolada nesta oposição. Profundamente convicta na pedagogia, na partilha e propagação de boas práticas, na construção de relações de confiança, no diálogo, na promoção de novas oportunidades, no direito a errar, na proximidade entre professores e alunos, Nowak coloca-se quase como um escudo protetor entre a escola (a direção e os outros professores) e os alunos, sofrendo, progressivamente, todo o ricochete das suas boas, ou bem-intencionadas, ações. Sozinha predispõe-se a descobrir a identidade do ladrão, de modo a conseguir paz para os alunos, paz para a escola. Consegue descobrir, mas tirando partido de uma ilegalidade bem-intencionada, violando o direito à privacidade, num autêntico escrever direito por linhas tortas. Azar de Nowak ou vontade forçada da história, a suspeita (uma funcionária) é a mãe de Oskar (Leonard Stettnisch), o seu aluno predileto, a quem ela oferece um cubo mágico para dar azo ao seu ágil raciocínio matemático. Um miúdo introvertido que subitamente parece passar de um autoisolamento para o papel de agente mobilizador da rebelião para a sua revanche, sem se perceber bem como.


De realçar que naquele seguir frenético da câmara pelos movimentos, a que vamos assistindo, dá-se um momento, ainda antes de Nowak chegar ao autor dos roubos, que abre a perspetiva dela para a hipótese de o infrator estar entre os adultos, professores ou funcionários: a câmara mostra-nos Nowak na sala de professores e, de seguida, agora sem se mover, dá-nos a profundidade de campo, permitindo-nos ver alguém a pôr ao bolso moedas retiradas do porquinho mealheiro, ao lado da máquina de café. A câmara esforça-se também para nos fazer ver Nowak como escudo, alvo, acusada, indefesa, isolada, interrogada - solitária num dos lados, de frente para o outro(s) -, seja com os colegas que a pressionam na sala de professores; seja com os seus alunos que a desrespeitam na sala de aula; seja com os pais que a confrontam na conturbada reunião; seja com os alunos que a entrevistam, vários em simultâneo, num modo especialmente agressivo, para o jornal da escola.


Atacada, acossada, ameaçada, insultada, agredida, Nowak não desarma na sua demanda de sanar conflitos, de dar a volta ao texto e de construir uma escola (e um mundo) melhor, mesmo que isso não pareça estar ao alcance de um bem-sucedido mexer mágico de dedos de Oskar no cubo. Uma overdose ou receita de bullying para, e com, todos é servida à professora Nowak, da parte de todos e mais alguns; aos alunos, da parte da direção da escola e de uns aos outros; e a nós, espetadores, da parte do filme e do seu realizador Ilker Çatak. Nada de que não se recupere!


'Das Lehrerzimmer', de Ilker Çatak (2023)

Visionado na Sala do Cinema Ideal

'A Sala de Professores', de Ilker Çatak (2023)

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