DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 8 de março de 2024

'Como Nossos Pais', de Laís Bodanzky: a felicidade fora do quadrado


Neste 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, o filme 'Como Nossos Pais' (2017), da realizadora brasileira Laís Bodanzky, é a escolha DA VAGA DE CASA. A fabulosa Maria Ribeiro dá corpo, alma e vida a Rosa, uma mulher que se multiplica, ou melhor, quadruplica, em quatro mulheres-estados: mulher-filha; mulher-casamento; mulher-carreira; mulher-mãe. Rosa movimenta-se nesta espécie de quadrado interligado, mas, ao mesmo tempo, fechado, percorrendo todas as arestas para chegar e unir sistematicamente os quatro vértices: as relações com os seus pais; a sua vida conjugal; a sua carreira profissional; o ser mãe. Neste quadrado (fechado) começa a faltar oxigénio e o sufoco apodera-se; é preciso buscar felicidade fora (do quadrado). É absolutamente sublime o modo como Laís sabe colocar a câmara no(s) sítio(s) certo(s), fixando-a, quase sempre, para nos dar o retrato singelo do desdobramento e aprisionamento, simultâneos, de Rosa, por meio de incompreensão, desamparo, raiva, impotência, frustração, desilusão, lágrimas, mas também pela reivindicação, determinação, convicção, entrega, sorrisos, deleite, paixão. Rosa, uma mulher contemporânea, uma mulher de São Paulo, uma mulher do Brasil, uma mulher do Mundo.


'Como Nossos Pais' abre com um plano fixo em que Laís reduz a profundidade de campo de modo a que, nos instantes iniciais, vejamos apenas uma mulher de costas, ligeiramente desfocada e a olhar para o exterior, e uma panela no fogão que rapidamente vai requerer a atenção dela. Esta associação imagética mulher-fogão-panela, que nos remete para a figura de dona de casa, promovida neste plano inaugural, é essencialmente uma chamada de atenção para o fardo que muitas mulheres continuam a carregar sozinhas: as tarefas domésticas no sentido mais amplo possível, incluindo a própria educação dos filhos, quando existem, numa conciliação forçada com a carreira profissional. A mulher que vemos no plano não é Rosa, mas sim a mãe (Clarisse Abujamra), que reuniu filhos e netos para um almoço de moqueca no pátio/jardim de casa, onde a câmara percorre todos os rostos à mesa, sendo que, além de Rosa e da mãe, somam-se apenas os rostos de Dado (Paulo Vilhena), marido de Rosa, e das duas filhas do casal, pré-adolescentes, como relevantes na história. Rosa, com 38 anos, continua arredada do seu anseio profissional - ser dramaturga - e para levar a vida, para suportar os encargos da família, produz conteúdos online para o site de uma empresa de loiças de casas de banho, um trabalho que sob o olhar crítico e altivo da mãe é relegado para um plano amplamente inferior por comparação com o ativismo ambiental pela defesa da Amazónia que o marido antropólogo leva a cabo. Num almoço-família pautado pela discussão e interrompido pela chuva tropical, a gota de água é a revelação da mãe a Rosa, que a frio decide substituir-lhe o pai de uma vida, Homero (Jorge Mautner), já separado da mãe, por um desconhecido, espoletando uma odisseia na vida da filha. O fumo do cigarro que vemos largado na mesa agora vazia parece ficar a exorcizar os fantasmas do passado.


Neste estado, ou vértice do quadrado, de mulher-filha, Rosa tem de lidar com a (nova) realidade de ter um outro pai ao fim de 38 anos, que afinal é um ministro do governo. Enraivecida pela mentira da mãe e aparentemente decidida a cortar laços com ela, eis que é agarrada pela notícia da doença terminal (da mãe); Rosa fica presa à realidade, à inevitabilidade e ao irreversível. Nunca sem choque, atritos, discordâncias permanentes, Clarice e Rosa, mãe e filha, continuarão às turras, seja a recordar as amarguras do passado - Rosa culpa a mãe por esta fazê-la sentir-se culpada durante a infância-juventude, preferia anúncios, mas a mãe só permitia ver notícias -, seja na trivialidade de escolher uns sapatos para comprar. Dotadas de personalidades bem vincadas, ambas se mantêm fieis ao modus vivendis da relação delas, mesmo com o fim tão próximo, o inevitável fim da vida que a morte tão poeticamente anunciada pelos dedos da mãe Clarice ao piano, numa autêntica sonata do adeus, traz. E não é assim na vida real? A doença terminal de um pai/mãe altera radicalmente a relação com o(s) filho(s)? Tendo a acreditar que não, as relações vão-se construindo e alimentando gradualmente, ganham forma, e, após uma vida inteira, essa estrutura relacional está demasiado enraizada, que não há nova rega, espontânea, que faça desenraizar. A mãe Clarice continua a regar as plantas do jardim para a alimentar a vida, enquanto continua a fumar o cigarro que acelera a morte. Se a convivência com a mãe é árdua e desaustina, o mesmo não se pode dizer da relação com o pai (agora, não biológico), Homero é artista-pintor-filósofo-cantor, e é o único capaz de desarmar Rosa, neste quadrado, e soltar-lhe um sorriso maravilhado, de deleite, de admiração e deslumbramento, mesmo que em 'troca' ela tenha de pagar com transferências bancárias os desatinos do pai. Se, na mãe, Rosa procura o reconhecimento; no pai, Rosa acolhe a ternura; da mãe herdou a personalidade forte, do pai enxertou, não pela genética, mas pela educação, o lado artístico-romântico, ainda amarrado, mas pronto a soltar-se. E o pai biológico? Num autêntico renascer para a vida, Laís enquadra Rosa, nua, escultural, de costas para nós, mas de frente para o Palácio do Planalto, encostada ao vidro/janela do quarto de hotel em Brasília. O encontro com o pai biológico não serve mais do que para expandir, extravasar esse nascer de novo a toda a sua vida, ao seu quadrado. Sem emoções inesperadas ou desesperadas, a vida segue, sem o seguimento deste episódio.


No estado mulher-casamento vemos uma Rosa em crescente desespero perante a ausência, mesmo quando presente, de Dado na vida familiar. Com a câmara sempre bem colocada, vemos Dado a dar corda aos sapatos, literalmente, no quarto, pronto para mais uma saída, enquanto no quarto ao lado, das filhas - vemos os dois quartos em simultâneo em plano fixo algumas vezes -, Rosa conta histórias para adormecerem, até a luz se apagar e a imagem sombra dela permanecer imóvel como torre vigia; outra vez, nesse mesmo plano, Dado dorme na cama do casal, Rosa acorda as filhas para a escola e pragueja. Dado acelera com o trolley no corredor, a escapulir-se, uma outra vez, e Rosa só já tem tempo de vê-lo a partir na varanda, em plongée (plano picado), atrás da rede protetora, como que presa numa gaiola a ver Dado num abraço caloroso à colega antropóloga que causa ciúme e desconfiança.


O estado mulher-casamento de Rosa condiciona claramente o (seu) estado mulher-mãe e o (seu) estado mulher-carreira. Após uma peripécia infeliz no trabalho, que leva a uma repreensão superior, Rosa explode ao telefone, vemo-la no sofá, no meio das duas filhas, que, uma de cada lado, vão penteando o cabelo da mãe. Mas as discussões de Rosa desembocam também nas filhas, em especial com a mais velha, fazendo-nos imaginar a relação de Rosa com a mãe, quando era criança - papeis invertidos. A panela a transbordar a água que ferve no fogão é sintomática do estado de nervos. Rosa precisa de escape, precisa de libertação, precisa de sair do quadrado.


Os encontros fortuitos de supermercado com Pedro (Felipe Rocha), pai de um coleguinha das filhas de Rosa, vão alimentando a vontade de sair em busca de felicidade, de ver a vida de uma outra forma. 'La Vie en Rose', de Édith Piaf, que toca no sistema sonoro do supermercado, sonoriza o imaginário e dá asas, ou melhor, pedais às bicicletas para essa fuga. Agora é Rosa que dá corda aos seus All Star azuis e parte. Mantendo-se sempre muito sóbrio, coerente, fidedigno, o filme não cede à construção fácil de uma nova realidade, e não foge ao choque direto com a realidade; assim abre, sem ruturas irreparáveis, o caminho frontal rumo à construção imperativa da mudança (efetiva).


'Como Nossos Pais', de Laís Bodanzky (2017)

Visionado em Filmin Portugal

'Como Nossos Pais', de Laíz Bodanzky (2017)

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