Finais dos anos 80, mesmo no fim, Suíça, era eu uma criança de anos que cabem nos dedos de uma só mão e já convivia, por meio de cassetes VHS acabadinhas de gravar em casa, com os heróis do momento no cinema de ação de Hollywood. Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Chuck Norris ou Jean-Claude Van Damme exibiam-se como heróis, que rapidamente se transformariam em ícones para a eternidade, com vozes dobradas em francês que, por essa altura, acreditava eu serem pertença deles, pelo que, também deveria crer, por esses dias, que todo o mundo falava français. Algum tempo depois, já instalado em Portugal, descobri as suas próprias vozes, mas nem por isso larguei aquelas valiosas VHS, detentoras das inesquecíveis sagas e sequelas, mais ou menos completas – Rocky; Rambo; ‘O Exterminador Implacável'; 'Desaparecido em Combate' e Kickboxer. De todas, Rocky era a minha predileta e, de todos, Rocky III (1982) era o meu preferido, certamente por trazer a ringue o grande B.A (Mr.T), o meu favorito dos 'Solados da Fortuna' - essa saudosa série que me acompanhou da infância de Genebra à adolescência de Trás-os-Montes -, agora, o temível Clubber Lang pronto a desafiar o campeoníssimo Rocky Balboa. Sim, foi este saudosismo de Rocky que me levou, há uns anos, à Sala do Cinema Ideal para ver 'O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki' (2016), do finlandês Juho Kuosmanen, que, após curtas e média-metragens, estreava a sua primeira longa. A figura de Olli Maki é da vida real. Foi um antigo pugilista finlandês que teve a oportunidade de enfrentar o campeão do mundo Davey Moore, norte-americano, no estádio olímpico de Helsínquia, perante cerca de 25 mil espectadores, no inolvidável 17 de Agosto de 1962 - nas palavras do próprio Olli Maki, o dia que deu título ao filme que ficciona este marcante acontecimento.
"Há comboios que só passam uma vez na vida", há quem diga, perante a oportunidade que se tem pela frente, que parece ser única, e que tem ou deve ser agarrada, sob pena de não voltar mais. Pois bem, Olli Maki (Jarkko Lathi) surge-nos pela primeira vez no ecrã a entrar, literalmente, num comboio, de olhos esbugalhados e olhar amedrontado, estarrecido pelo forte ruído do caminho nos carris e do aparentemente frenético movimento de gentes, que não vemos, na carruagem - prenúncio do que aí vem. E sim, Olli apanhou o comboio que só passou uma vez na sua vida: a viagem da terra natal Kokkola, onde era padeiro e pugilista amador, rumo à capital Helsínquia, rumo ao grande combate. Metaforicamente falando, podemos dizer que Olli, na pele de um não-herói convicto, decide sair no final da primeira paragem e saborear a restante viagem, o seguimento daquela que viria a ser uma longa vida, a pé, de mãos dadas com a amada Raija (Oona Airola), com esta descalça a equilibrar-se no carril; ambos prosseguem na busca da serenidade, cruzando-se com um par-espelho de idosos (li numa entrevista de Kuosmanen que esse casal de idosos são os reais Olli Maki e Raija; soube entretanto que Olli morreu em 2019). Até aqui chegarmos Olli tem de preparar-se afincadamente para enfrentar Davey Moore, campeão mundial em título de peso-pluma. Ainda antes de chegar a Helsínquia, num casamento, Olli e outros têm um momento de divertida entropia acerca das categorias peso-pluma, peso-ligeiro, peso-galo e a correta arrumação das mesmas; também nesta boda de casamento, Olli e Raija dão o primeiro beijo, longe e perto o suficiente para se anteciparem ao padre e aos noivos em questão.
Chegados a Helsínquia - Olli traz Raija com ele - Eelis (Eero Milonoff), antigo pugilista e agora uma espécie de manager e treinador em simultâneo, assume os comandos de todos os passos de Olli na preparação para o combate. Neste mundo novo, que para Olli nada tem de maravilhoso, os microfones, as câmaras fotográficas, e também de filmar, os flashes e os holofotes, as luzes da ribalta, os cumprimentos, os acenos de cabeça, a multiplicidade de talheres, todos são adversários, contrastam com a sua simplicidade, tranquilidade, serenidade. Olli só quer combater porque gosta de box, não porque almeje a fama, ou porque queira mudar de vida. Enquanto a Finlândia, através dos patrocinadores, os senhores da alta finança, se engalana para receber a América, num evento mediático à escala mundial, e suspira para construir a figura de um novo herói (desportivo) nacional, missão que Eelis assume empenhadamente, Olli alheia-se, enfada-se e, ainda que submissamente colaborante, resiste contrariado a essa fabulação megalómana. Olli vê-se apenas como um boxeur, disposto a dar tudo para alcançar a melhor condição física e atlética até ao grande combate, suando as estopinhas até ao limite na sauna, mas sem qualquer ambição de contribuir para ser um one-man-show que Eelis tenta forçar. Perante os jornalistas, nas conferências de imprensa, na sua afável autenticidade, Olli vai respondendo de forma lacónica às questões, sem mind games, sem exibicionismos, sem tiradas desafiadoras. "Vou lutar e logo vemos o que acontece", diz ele, levando Eelis a um verdadeiro colapso nervoso.
Nesta tentativa de fabricar o herói nacional, através de entrevistas, documentários, campanhas publicitárias, eventos sociais, coisificando a figura de Olli, há dois momentos que a câmara nos transmite, sem diálogos, que são bem reveladores do que vai no (real) pensamento de ambos os lados da barricada: o grupo de patrocinadores e Olli. Primeiro momento/cena: quando Olli e Eelis regressam, no meio de uma tromba de água, ao encontro dos patrocinadores, refugiados no interior de um edifício, para 'resgatarem' a filha de Eelis, esquecida na casa de banho, a câmara fixa no olhar de um dos patrocinadores, um homem robusto, que olha de cima para baixo, altivo, em silêncio, para a fraca figura de Olli, pequeno, curvado, a pingar água. Segundo momento/cena: Olli regressa, agora sozinho, a uma espécie de circo onde já tinha estado anteriormente com Raija (entretanto voltou para Kokkola), em que os espectadores/participantes atiram bolas para tentarem acionar a queda na água da mulher-estátua que se encontra deitada numa plataforma; no final, Olli espreita para o camarim e vê a mulher desolada, triste, fatigada, a tirar a peruca, após mais um número humilhante a que se submeteu, tal como ele, tal como Olli.
Concedido o recato que Olli necessita para a preparação final, este pode finalmente imiscuir-se natureza adentro, nu a banhos no rio, num plano geral de paisagem natural deslumbrante - onde a qualidade da fotografia, a preto e branco, vem ao de cima -, ora desencantando um papagaio (de papel) preso e perdido numa árvore, para, agarrado e a segurá-lo, andar às voltas entre as árvores, libertando-se de tudo e todos, naturalmente, apetece dizer.
O combate com Davey Moore? Sim, o filme reserva-lhe quase três minutos, num total de 93 (duração do filme): mais do que suficiente para sentirmos a adrenalina do estádio, o barulho ensurdecedor, a multidão em júbilo. Também há quem diga que "o que é bom acaba depressa", pois bem, assim foi, para aqueles milhares, assim foi para Olli, que na sua autenticidade desconcertante diz aos jornalistas que foi o combate mais fácil da carreira porque acabou muito depressa. Parecem palavras de quem ganhou, e são, Olli Maki acabara de ganhar aquele que seria o dia mais feliz da sua (longa) vida. Quase no fim, no jantar pós-combate, o peso da vitória parece ser o mesmo que o peso da derrota, Olli e Davey Moore estão ambos sozinhos, em lados opostos, separados das comitivas, organizadores e patrocinadores, com uma pequena diferença: Olli tem Raija com ele, ali, e para a eternidade. [Na vida real Davey Moore viria a morrer no ano seguinte, em 1963, após sequelas de um combate contra o cubano Sugar Ramos].
The Happiest Day in the Life of Olli Maki, de Juho Kuosmanen (2016)
Visionado em Filmin Portugal
'O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki', de Juho Kuosmanen (2016)