DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 14 de março de 2024

'Regresso a Seul', de Davy Chou: cinema do corpo


Talvez a arte de representar não seja tão diferente das artes plásticas, talvez tudo esteja relacionado com o sentir e o exprimir, como se sente e como se exprime, muitas vezes em simultâneo, na mesma fração de segundos. Assim, será mais fácil entender, compreender e assimilar a estonteante representação da franco-coreana Park Ji-Min, escultora e pintora, que se estreou como atriz em 'Regresso a Seul' (2022), do franco-cambojano Davy Chou. Num ato de habilidade performativa plena, Park Ji-Min faz uso da sua corporalidade como meio e reflexo de expressão (e contenção) de emoções, por vezes numa fisicalidade exacerbada, revestindo-se de incerta e inconstante exaltação temperamental, revelando a fragilidade e a raiva camufladas - uma verdadeira ode ao cinema do corpo de [John] Cassavetes. Mas se no cinema 'cassavetessiano' o corpo dá sentido muitas vezes à palavra, definindo a sua semântica final - a construção da personagem, o improviso, a representação cabiam só ao ator, mas não no que toca ao texto, esse era rígido, e para seguir, conforme concebido por Cassavetes -, em Freddie (a personagem protagonizada por Park Ji-Min) o corpo substitui-se, não raras vezes, à palavra, subentendida ou imaginada, ou desconhecida.


São 12 momentos, praticamente de início ao fim do filme, em que o cinema do corpo exibido por Freddie (uma jovem de 25 anos, de nacionalidade francesa, adotada à nascença na Coreia do Sul por um casal francês, cresceu e viveu em França sem nunca ter vindo ao seu país de origem) conta-nos a história de quem supostamente aterrou em Seul mais ou menos por acaso, supostamente, porque ouvimos ela dizer à mãe adotiva, por videochamada - vemos no telemóvel o símbolo 3G, o que nos faz percecionar que o filme irá certamente avançar na fita ou na linha do tempo, no total avança oito anos, em três intervalos ou espécie de capítulos -, que a intenção era passar uns dias em Tóquio, mas os voos foram cancelados, daí a mudança de rota. Começa assim uma rota em busca de identidade.


Primeiro momento de cinema do corpo: Freddie janta na companhia da jovem rececionista da guest house onde fica alojada e com outro rapaz sul-coreano, e quando estes lhe dizem que devem ser eles a servi-la, com a garrafa de soju, por serem os anfitriões, e que o contrário é até insultuoso, Freddie levanta-se da mesa, apanha uma garrafa no frigorífico do restaurante e saltita de mesa em mesa a servir e a brindar, reunindo por fim todos à volta da mesma (mesa), semeando o rebuliço no até agora sossegado espaço. Efeito: rejeição / confronto perante a cultura e tradição sul-coreana e assunção/demonstração da sua identidade ocidental (francesa). 


Segundo momento de cinema do corpo: enquanto a rececionista acerta por telefone o encontro de Freddie com o pai biológico, a câmara dá-nos um plano aproximado de rosto de Freddie, de frente para ela, onde vemos (e não vemos) as emoções contidas e seguradas. Efeito: não ceder, não demonstrar fragilidade e manter-se sóbria perante o acontecimento que aí vem.


Terceiro momento de cinema do corpo: surto (simulado) de loucura no autocarro a caminho do encontro com o pai biológico. Efeito: é um "com a verdade me enganas", ao simular aquele ato de medo, desespero, tenta demonstrar à rececionista - que a acompanha na viagem e que servirá de tradutora francês-coreano entre ela e o pai -, e a ela própria, que está a lidar maravilhosamente bem com a situação.


Quarto momento de cinema do corpo: nos momentos de reencontro com o pai, e com a restante família paterna, o rosto de Freddie é defensivo, tendencialmente fechado, sem ser de desagrado, apardalado com aquelas caras novas, de conversas codificadas que a amiga rececionista vai traduzindo mais ou menos enviesadamente, de forma polida, digamos. Freddie parece estar a encaixar aquela (nova) realidade, parece processar emoções, procurando chão e equilíbrio. Efeito: não demonstrar ao pai e à restante família o que está a sentir.


Quinto momento de cinema do corpo: no banco de trás do táxi, a cabeça de Freddie tomba e aconchega no colo da amiga rececionista. Efeito: tempo de baixar algumas guardas, algumas defesas.


Sexto momento de cinema do corpo: um bar recatado como o restaurante inicial entra também em efervescência, dançante agora, com o DJ a mudar a música, e o corpo de Freddie, acompanhado em pleno pela câmara, a improvisar a pista numa dança pouco ortodoxa, de movimentos bruscos. E que bem Davy Chou soube colocar a música, quer na escolha temática, quer no volume (bem como a sua ausência) ao serviço de Freddie, ao serviço da sua fisicalidade, ao serviço da história, ao serviço do filme e não o inverso, como vimos recentemente no badalado  'A Sala de Professores' (2023), Ilker Çatak, que abordamos em DA VAGA DE SALA. Efeito: libertação total das emoções contidas no pós-encontro com o pai.


Sétimo momento de cinema do corpo: passaram-se dois anos, Freddie agora vive em Seul, e é consultora de uma empresa francesa. Com o visual totalmente renovado, Freddie veste um casaco preto de cabedal, com gola levantada, remetendo para a figura de guerreira do futuro. Efeito: indiretamente, pega nas armas e prossegue a sua guerra pela (sua) identidade.


Oitavo momento de cinema do corpo: perfeitamente imiscuída no underground da noite de Seul, a pista de dança psicadélica na cave vira arena para ela. Efeito: reação, extravasamento à notificação de rejeição pela mãe biológica. 


Nono momento de cinema do corpo: a gargalhada-quase-choro perante a foto enviada pelo pai biológico aquando do seu aniversário. Efeito: turbilhão de emoções por definir.


Décimo momento de cinema do corpo: avançamos mais cinco anos no tempo e num jantar-reencontro com o pai biológico, Freddie pede-lhe para ele tocar na sua cicatriz, fruto de um acidente de mota relativamente recente. Efeito: pelo corpo dela e através do corpo dela, Freddie fez o pai sentir a dor (de alma) dela, uma cicatriz de vida inteira.


Décimo-primeiro momento de cinema do corpo: ao fim de quase duas horas (de filme) e de oito anos (de narrativa), as lágrimas saltam e escorrem pelo rosto. Efeito: o desmanchar inevitável.


Momento final: de mochila às costas, o caminho em busca da identidade prossegue. No ciclo de eterno retorno que é a vida, que muitas vezes anda à roda, mas nem sempre sobre rodas como as malas ou carrinhos de mão que vemos de estranhos na rua, Freddie volta à receção de um alojamento, como no início. Sozinha e sem música, resta o piano como veículo (artístico) para o corpo exprimir as emoções.


Retour à Séoul, de Davy Chou (2022)

Visionado em Filmin Portugal

'Regresso a Seul', de Davy Chou (2022)


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