DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 21 de fevereiro de 2024

'Uma Separação', de Asghar Farhadi: a realidade vista por um vidro


Se em 'À Procura de Elly' (2009) Asghar Farhadi abre o filme com os créditos a correrem no escuro do interior de uma caixa de correio onde vemos o depositar de cartas, por sua vez, em 'Uma Separação' (2011), é o scanner de uma impressora, a digitalizar sucessivos documentos de identificação, que dá fundo aos créditos iniciais, antes de entrarmos no filme propriamente dito. Em 'À Procura de Elly' somos remetidos para um abrir sucessivo de cartas - não em sentido literal - de modo a desvendar os segredos; já em 'Uma Separação' somos desafiados para a obtenção do retrato mais fidedigno dos diferentes protagonistas: o padrão moral, mental e comportamental. Tal como em 'À Procura de Elly', os jogos de linguagem (relatar um acontecimento; fazer suposições sobre o acontecimento; pôr uma hipótese e testá-la) voltam a ser jogados após o acontecimento trágico, mas em 'Uma Separação' é explorada mais a fundo uma clara separação (passe a redundância), abrindo e mostrando um fosso maior, entre duas visões de sociedade no Irão, expondo, quer fragilidades quer virtudes, em ambos os lados da barricada.


A separação em curso do casal, Nader (Payman Maadi) e Simin (Leila Hatmai), pais de Termeh (Serina Farhadi), abre o filme e está presente até ao seu final. Nader e Simin simbolizam a ala mais iluminada, liberal e progressista iraniana, mais desprendida do fundamentalismo religioso e doutrinário fomentado pela teocracia que lidera o país. Simin quer divorciar-se porque Nader recusa-se a acompanhá-la na sua vontade de emigrar, de sair do Irão, essencialmente, segundo ele, por causa do pai, doente de Alzheimer e que está aos seus cuidados. Simin, professora, é uma mulher independente, autónoma, toma as suas decisões sem necessitar do consentimento do marido, tapa a cabeça com o hijab, mas veste calças de ganga, fuma, conduz, e decide sair de casa. Ao acompanharmos a separação em curso do casal, observamos, em simultâneo, a separação entre esta franja da sociedade do Irão, mais próxima de direitos, valores e comportamentos típicos das democracias liberais ocidentais, e uma outra ala, menos esclarecida, mais vetada ao obscurantismo, regendo-se pelo fundamentalismo religioso e pelo ultraconservadorismo (moral), alinhada com o pensamento político-religioso que vigora no poder: Razieh (Sareh Bayat), contratada como cuidadora do pai de Nader, e o marido Hodjat (Shahab Hosseini), pais de uma pequena miúda, são os representantes do velho Irão, digamos assim. Além da separação do casal, além da separação entre duas visões de sociedade (iraniana), assistimos também à separação entre a verdade e a mentira (ou omissão).


Farhadi usa o vidro, os vidros das portas, os vidros das janelas, em casa, na polícia, na escola, no tribunal, usa os guichés de atendimento, usa os espelhos retrovisores do carro, para, através da sua câmara, nos mostrar diálogos e/ou olhares entre os protagonistas, separados, divididos por esta espécie de barreira à transparência, um filtro para a verdade e para a mentira, entre todos, em diferentes momentos, entre maridos e mulheres, pais e filhos, acusados e acusadores, mas também, muitas vezes, o vidro a separar-nos da história, nós (espectadores) a vê-los por um vidro.


 

Neste jogo de separação entre verdade e mentira, de transparência de vidro ou de falta dela, todos estão refletidos, todos exceto o velho convalescente pai de Nader, que vai sofrendo as consequências de toda esta separação, e a pequena filha da cuidadora Razieh (grávida e que depois sofre um aborto, supostamente, ou não, causado pela discussão, seguida de empurrão, com Nader, este revoltado por ela ter deixado o pai sozinho em casa amarrado por um braço). O pai de Nader e a filha de Razieh a tudo assistem, mas não jogam o jogo de verdade e mentira dos restantes, ele já velho demais, ela ainda nova demais - a pequena resiste ao forçar de mais um jogo de linguagem, quando a professora de Termeh quer interpretar um desenho que ela fez e extrair conclusões sobre o comportamento dos pais, do casal -, unidos na pureza e na inocência, ambos sorriem - e são os únicos sorrisos que vemos ao longo de duas horas de filme - genuinamente, motivados pela adrenalina da garrafa de oxigénio: ela a brincar com o regulador de intensidade e ele a usufruir dessa variação brusca e intensiva de ar que vai absorvendo por boca e nariz. Já os demais, todos estão enredados no jogo da separação entre verdade e mentira: Nader, obstinado em defender a sua inocência, mente à justiça, à sua família e ao casal acusador, sobre o conhecimento da gravidez da cuidadora; Simin, na tentativa e esperança de salvar o casamento, mente a Nader sobre a sua saída de casa, não é definitiva, concertou com a filha de que seria apenas de duas semanas; Termeh, para livrar o pai da prisão, mente à justiça sobre este saber ou não da gravidez da cuidadora; Razieh, que cobre todo o corpo com o tradicional e conservador chador, desesperada para ajudar o marido desempregado, endividado e perseguido pelos credores, omite-lhe o trabalho na casa de Nader - trabalho esse que o marido não permitiria pelo contacto próximo, inapropriado pelas convicções religiosas que professam, com um homem, neste caso, o velho e doente pai de Nader -, omite à justiça e a todos, até certo ponto, o atropelamento que sofreu no dia anterior ao desentendimento com Nader, e mente na reconstituição; Hodjat, descontrolado, agressivo, intolerante, mente a ele próprio, enquanto crente fervoroso na religião, ao querer forçar a esposa a jurar pelo Corão, mesmo sem certezas, para poder salvar a pele e receber o dinheiro que (ele) necessita, num ato de absoluta contradição.

A caminho de um final incerto, o vidro parte, não resiste ao derradeiro confronto entre verdade e mentira, porque se na visão de sociedade mais iluminada do Irão de Farhadi é possível mentir à justiça dos tribunais quando se acredita na inocência, por outro lado, na visão de sociedade mais obscurantista do Irão de Farhadi não é possível mentir à justiça divina: é pecado.


A Separation, de Asghar Farhadi (2011)

Visionado em Filmin Portugal

'Uma Separação', de Asghar Farhadi (2011)

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