'Força Maior', de Ruben Östlund: para lá da fotografia
Numa das cenas mais impactantes do badalado filme brasileiro 'Ainda Estou Aqui' (2024), de Walter Salles, a atriz Fernanda Torres, a recriar Eunice (esposa do deputado Rubens Paiva, preso, torturado e morto pela ditadura militar brasileira), diz aos cinco filhos para sorrirem todos, isto enquanto posam para uma fotografia de uma revista - isto já após o desaparecimento do marido/pai. Contudo, o fotógrafo de serviço pede para fazerem caras sérias, assim quer o editor, diz ele, certamente para exponenciar as emoções associadas à dor, a consternação; todavia, Eunice/Fernanda Torres mantém-se firme e ainda ganha mais força para sorrir, incitando os filhos a não pararem de sorrir - um ato de verdadeira resistência de quem rejeita ser vencida, de quem quer transmitir coragem, em vez de fraqueza, a todas as outras vítimas daquele regime totalitário e repressivo. Mas, se reparamos com atenção, nesse retrato de família há um rosto que não sorri - fica sério -, pertence à filha mais velha, que, ao contrário dos restantes, não cede à vontade da mãe: eis o punctum da fotografia. Faz parte do que há para lá da fotografia. Já em 'Força Maior' (2014), de Ruben Östlund - escolhido DA VAGA REALIZADOR DO MÊS para Janeiro -, também num retrato de família, numa fotografia tirada por alguém que quer vender boas recordações, o casal sueco Ebba (Lisa Loven Kongsli) e Thomas (Johannes Bah Kuhnke), com os dois filhos, são simpaticamente forçados a sorrir para o flash, e, como se tal não chegasse, têm ainda de se abraçar em sequência - os quatro - e ainda, como cereja no topo do bolo, as cabeças do casal têm de encostar-se uma na outra. Dito, feito, eis o retrato de uma família feliz nas férias de neve, eis o plano inaugural do filme que, de imediato, só pode suscitar a questão: e para lá da fotografia?
Para lá da fotografia há uma avalanche. Primeiro, uma avalanche de neve que cresce ferozmente em direção a fotografias e vídeos que os telefones empunhados na quietude solarenga da esplanada de um restaurante captam até se aperceberem da ameaça; uma ameaça que acabaria por ser apenas um susto, mas que para o casal seria o desembocar de uma segunda avalanche: de emoções contidas e reprimidas. A fuga isolada de Thomas, perante o avançar da avalanche, deixando para trás Ebba e os filhos, abre uma fresta, que com o evoluir do filme ameaça virar cratera, no retrato idílico e perfeito de vida familiar que aquele fotógrafo na estância de esqui construiu. Aquela realidade tão maquilhada pelo homem da máquina (fotográfica) começa a esboroar nos movimentos humanos (naturalmente) ziguezagueantes - na montanha coberta de neve conseguimos ver o esquiar humano aos ziguezagues, como suposto, e o correr retilíneo dos teleféricos pelos cabos que as roldanas sustentam. E apesar de ouvirmos o ruído maquinal da rampa rolante para entrada e saída das pistas de esqui alinhar-se com o silêncio da família após o choque, bem como, o barulho à noite das máquinas limpa-neves em harmonia sonora com as escovas eletrónicas que lavam os dentes da família, ou apesar de observamos o encaixe geométrico, quase perfeito, dos quatro no espelho da casa de banho ou na cama king size, em simultâneo, instalados e embutidos no conforto, na elegância, na sobriedade daquela suite quente num hotel no meio do frio de neve, há dois elementos no filme que evidenciam que a fresta entre o casal vai abrir mais, talvez até virar cratera. E recordo-me que na primeira vez que vi 'Força Maior' fiquei sempre com essa sensação de que a distância entre Ebba e Thomas ia agudizar-se até a um inevitável afastamento, mais ou menos dramático, mais ou menos intenso: os excertos da composição de Vivaldi, Summer (L'Estate) - um dos dois elementos que referi como reveladores do alastrar da fresta aberta -, revelam os interiores de Ebba e Thomas em ebulição, apesar da exteriorização nunca reverberar vorazmente esses estados, mesmo quando ele tem uma espécie de ataque de pânico misturado com ato de contrição (revela à mulher que foi infiel, que mente e faz batota nos jogos com os filhos); e a presença do funcionário da limpeza como um mirone-testemunha que acende um cigarro nos corredores do hotel entre as pausas da limpeza e estaciona frontalmente a ver e a ouvir os hóspedes, Ebba e Thomas, no caso - este é o segundo elemento. O comportamento inusitado e errático deste funcionário numa unidade hoteleira em que tudo parece estar no lugar certo, num rigor geométrico, leva-nos para o tal ziguezaguear humano natural, em oposição à linearidade de máquinas ou de estruturas.
Não é descabido associar a postura deste funcionário ao comportamento de Thomas aquando da avalanche de neve - fugiu para sobreviver -, ambos imbuídos naquilo que Kant chamaria de disposição para a animalidade (para os impulsos sensoriais, para necessidades fisiológicas, para prazeres imediatos), descurando, por momentos, aquilo que o filósofo alemão definiria como moralidade (seguir a razão e princípios éticos), precisamente o que Ebba fez: protegeu os filhos em momento de perigo. A certa altura Ebba diz ao casal amigo que o instinto dela foi proteger os filhos e o instinto de Thomas foi outro. Talvez Ebba seja quem melhor harmoniza animalidade e moralidade, numa visão equilibrada da vida, da humanidade, e quem mais próxima está do prazer moral kantiano. Numa conversa de Ebba com uma amiga/conhecida no hotel, surge uma discussão à volta das visões diametralmente opostas de vida conjugal / familiar: Ebba centrada e fechada no círculo marido-filhos; a amiga em relações fugazes com outros homens - tem uma relação aberta com o marido -, dividindo o tempo entre as suas 'aventuras' e a vida familiar. Ebba chega mesmo a ficar indignada com o comportamento e as opções da outra mulher, reforçando aqui a sua disposição para a moralidade. Mas, esse fardo da moralidade parece pesar cada vez mais em Ebba, ao ponto de sugar-lhe a felicidade - quando decide ir esquiar sozinha vemo-la em reflexão, provavelmente a medir o peso do fardo.
Na verdade, quando vemos 'Força Maior' pela primeira vez ficamos com a sensação de plenitude, como se o filme tivesse cumprido o seu propósito, colocando-nos em reflexão, introspeção, observação e num acutilante suspense em contínuo, mesmo até ao final, porém, em visionamentos posteriores parece que parte da experiência que Ostlund põe em prática, ou em equação, fica congelada pela neve em volta; e aquele derradeiro plano dos viajantes a pé pela estrada, montanha abaixo, é como se estivesse a dizer-nos que esta experiência de exploração das reações do ser humano em contraste com o (politicamente) correto, os valores, a ética ou a razão iria seguir caminhada mais à frente com ' O Quadrado' (2017) e 'Triângulo da Tristeza' (2022).
'Força Maior' (2014), de Ruben Östlund
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'Força Maior', de Ruben Östlund (2014)