DA VAGA DE SALA - Último Escrito de 2024

Stéphane Pires • 31 de dezembro de 2024

D'Est, de Chantal Akerman: o lento abrir da cortina


"Je voudrais faire un grand voyage à travers l'Europe de l'Est tant qu'il en est encore temps. La Russie, la Pologne, la Hongrie, la Tchécoslovaquie, l'ex-Allemagne de l'Est. Je voudrais filmer là-bas à ma manière documentaire frôlant la fiction. Tout ce qui me touche" (Chantal Akerman, no livro D'EST, AU BORD DE LA FICTION)

[“Queria fazer uma grande viagem pela Europa de Leste enquanto ainda fosse tempo. Rússia, Polónia, Hungria, Checoslováquia, a antiga Alemanha Oriental. Queria filmar lá com o meu estilo de documentário, roçando a ficção. Tudo aquilo que mexe comigo"]


Depois de alguns visionamentos no ecrã de casa, ontem consegui finalmente ver D'Est  (1993), de Chantal Akerman, em Sala, e diria que foi no sítio certo, e também no momento certo: na Cinemateca (Sala Luís de Pina), a pouco mais de 24 horas de fecharmos o ano. Relegado para a primeira fila - o único lugar livre junto ao corredor, as pontas que sempre procuro -, foi praticamente em contre-plongée, com a cabeça erguida até roçar nas costas, que me entreguei aos travellings lentos e longos, bem como aos igualmente longos planos fixos: o lento abrir, puxar, correr, destapar da cortina (de ferro). Nos travellings, a câmara puxa vagarosamente a longa cortina - tão longa que dava para separar e dividir o mundo em dois blocos - para que vejamos sem parar, como se caminhássemos por corredores, por ruas ou por estradas, olhando para rostos em catadupa; já nos planos fixos, a câmara escolhe as pausas para ficarmos, contrastando com o ir, fabricando retratos de pessoas e lugares. Sem legendas, sem voz-off, sem diálogos percetíveis, sem depoimentos e sem testemunhos filtrados, sem imagens de arquivo, sem contextualização, sem identificação geográfica, sem números, sem análises, sem música introduzida com efeito ou propósito, entre a vida que por ali vemos naquelas paisagens da Europa de Leste e entre nós, espectadores, só existe a escolha dos locais e dos momentos que Akerman  decide filmar: nada mais, tudo o resto é (des)construído por nós.


A noite, o dia, a madrugada; o campo e a cidade; os exteriores e os interiores; a paisagem e as pessoas; o movimento e o estacionamento; as árvores e os prédios; as carroças puxadas pelos animais e os carros e camiões; a apanha coletiva da batata e as danças mais ou menos ortodoxas que se ensaiam em festividades. Os ventos de mudança sacodem as folhas das árvores nas searas, à beira da estrada onde os veículos motorizados passam espaçadamente, mas não são suficientes para moverem símbolos de um Império que resiste - como aquele monumento com tons de vermelho que vemos junto à estrada num longo plano fixo. Este tempo é também tempo para deixar irromper o rock and roll em festas na noite escura, em que os corpos, muitos, são sombras, pois a iluminação D'Est vive da parca luz dos postes de rua; mas é tempo também para o country saltar pela janela numa manhã soalheira. Voltando ainda à iluminação, o pulo do campo para a cidade não ganha propriamente cor e luz. A luminosidade oriunda das marcas multinacionais, e da sua publicidade, com efeito de arrastão depois para as empresas nacionais, de cada país - por falar nisso, vale muito a pena ver o mais recente filme de Radu Jude, que esteve no último Doclisboa, Eight Postcards From Utopia'  (2024), uma autêntica seleção primorosa de anúncios publicitários que invadiram a televisão romena nos anos 90, pós-queda do Muro de Berlim -, parece estar ainda restringida aos letreiros cromáticos da Pepsi; ainda não é tempo para outdoors e néones irradiarem luzes e cores pela paisagem urbana. Quando Akerman  nos põe a bordo do carro-câmara no meio das estradas, cidade afora, as luzes restringem-se aos faróis dos outros carros e das janelas dos prédios à volta. O comércio de rua é local, é nacional, e espalha-se por pequenos quiosques pré-fabricados em descampados em que a neve tapa a terra batida e onde conseguimos descortinar e ler Tabak [tabaco] num letreiro cinzento; descampados ainda por explorar, construir, embelezar, ocupar, e por onde as pessoas andam aos magotes, até se fixarem em longas e intermináveis filas - noite, dia e madrugada, tanto faz - à espera de algo, de algo que venha, aparentemente esperam pelo transporte público coletivo que naquele tempo dita lei, contrariamente aos tempos de agora, como vimos noutro filme de Radu Jude, o nosso melhor filme de 2024, 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo' (2023), em que o trânsito de Bucareste se assemelha a uma pista de carrinhos de choque e onde a erva cresce sobre os caminhos de ferro.


Entre o movimento e o estacionamento, entre retratos coletivos, nos exteriores, e individuais - solitários, sobretudo -, nos interiores, a câmara de Akerman  relaciona-se com rostos e corpos, como se houvesse, simultaneamente, um misto de ânsia e de passividade de quem é filmado; dispostos a olharem, a descobrirem o outro lado da cortina, mas também a mostrarem-se, a quererem ser vistos do outro lado, com mais ou menos timidez, com mais ou menos curiosidade, como mais ou menos frieza, com mais ou menos denúncia; mesmo aqueles que fazem cara feia ou até parecem resmungar com a câmara, não estão efetivamente incomodados com a sua presença. Há até um momento em que a câmara parece tornar-se (impossivelmente) invisível quando se transforma numa espécie de rotunda, de marco, quando no meio de um aglomerado de gente, no interior de uma estação de comboios (supostamente em Moscovo), acompanha o movimento de um paraplégico que circula num rudimentar carrinho de madeira com rodas; numa panorâmica, a câmara segue os olhos do homem paraplégico, quase rente ao chão, retribuindo-lhe até ele sair fora-de-campo o olhar permanente que este lhe concedeu, o único a fazê-lo; entretanto, a câmara conclui mesmo a panorâmica de 360 graus e volta ao ponto de partida, para, de seguida, voltar a rodar: e quase já ninguém repara nela. Absolutamente sublime.


O visionamento   do filme D'Est deveria constar do programa curricular de todas as escolas, digo eu, talvez na disciplina de Cidadania, que tanta controvérsia tem gerado. O visionamento seria um ato de resistência para os jovens: saber lidar com o tédio; procurar a concentração quando ela quer escapar; aprender a olhar para ver; saber escutar quando as imagens são subalternas do som; ganhar cultura de espectador: para cinema e todas as outras artes.


D'Est, de Chantal Akerman (1993)

Visionado na Cinemateca, Sala Luís de Pina


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D'Est, de Chantal Akerman (1993)

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