'Dias Perfeitos', de Wim Wenders: um filme com Rosto
Por Cláudia Ferreira
Chegamos sempre tarde ao mundo, como o afirma Emmanuel Levinas: já tudo está criado. E, no entanto, como Hirayama, a personagem-pilar de 'Dias Perfeitos' (2023), diz à sua sobrinha: existem muitos mundos, uns tocam-se, outros não. Ao filme de Wim Wenders creio que também se chega tarde, como se de facto entrássemos na vida de Hirayama sem razão e, por tal, chegássemos sem uma explicação de qualquer natureza. Pese embora, existem dois importantes símbolos à partida: o céu e a terra, e as árvores, que fazem a ligação entre o céu e a terra através das suas raízes e copas. Este desdobramento inicial haverá de repercutir-se de diversas formas: noite e dia, sono e ação, sonho e vigília, diferença e repetição, analógico e digital, árvore e torre.
Hirayama envergava no seu trabalho de limpeza das casas de banho de Tóquio, limpeza que fazia com extremo zelo, uma farda azul. E questiono: qual é a farda que veste a identidade exata de cada ser humano? Vestido, Hirayama vem, na verdade, in-vestido. Além de paulatinamente sentir acordar-se dentro de mim, durante a experiência de 'Dias Perfeitos', a seguinte pergunta: haverá semelhante perfeição? Perante o tempo das conexões absolutas será efetivamente plausível um homem que se regula pela medida analógica em todas as frentes?
E, no entanto, existem sinais de que Hirayama é um homem, tanto com um passado que eventualmente o atormenta – o que se extrai da ambiência dos seus sonhos, que sintetizam algo da ordem do mistério, e diga-se que estes se sucedem durante todas as noites, como com uma vida psíquica extremamente rica – o que resulta de ler, invariavelmente antes de dormir: as duas coisas estão, provavelmente, relacionadas. Porque habitar o Mundo, ou um mundo, é, além do dasein que Heidegger nos transmitiu, ou seja, o estar-aí, também o que Emmanuel Levinas soube tão bem identificar – a evasão que dele se presta, seja através da arquioriginaridade, seja pelos livros em que penetramos, ou das obras de arte que visitamos, acrescento. Uma evasão não significa alienação, mas antes linha de fuga.
Apercebemo-nos, a dado momento, que Hirayama fez a opção de limpar casas de banho em consciência, além de manter um estrito ritual que se repete dia após dia. Onde se encontrará o verdadeiro humano do Homem? Na sucessão de noite e de dia? Na formulação de hábitos com um acento quase maníaco? Na sua profissão exercida com dignidade? Na contemplação que reserva à natureza? Na sua resistência face a um Mundo descuidado? Na bondade que revela? No amor que sente? Saí do cinema com uma torrente de coisas para dizer, bem como com necessidade de andar a pé, o que fiz. E, no entanto, eis que passado algum tempo o silêncio vem paulatinamente rodear essa torrente de coisas para dizer, o que me instiga a pensar que a vida é o que é e não se pode noticiá-la, ou documentá-la, exaustivamente; talvez por isso Hirayama se remetesse a um silêncio tão essencial.
Eis que no final, a fixação do Rosto de Hirayama nos faculta, através da manifestação da variação das suas expressões, uma chave preciosa.
Cláudia Ferreira | Historiadora de Arte, resultante da sua formação inicial, fez doutoramento em Estudos Contemporâneos, escreve habitualmente na Mutante sobre obras de arte e é investigadora.
'Dias Perfeitos', de Wim Wenders (2023)