'Nada a Perder', de Delphine Deloget: um corpo de emoções como arma
Estava a meio da preparação mental para este escrito quando me salta à vista um email da Filmin, acabado de chegar, a propósito da estreia na plataforma de streaming do filme 'A Sala de Professores' (2023), do germânico Ilker Çatak, sobre o qual escrevi há cerca de um ano em DA VAGA DE SALA. Nesse momento, a minha reflexão em curso poisou nesse aclamado filme, relembrando a notável interpretação da atriz Leonie Bnesch, no papel de uma professora, isolada, na sua demanda contra o mundo - o sistema, a escola, os professores -, numa verdadeira cruzada para defender os alunos, bem como os princípios e valores humanistas que devem nortear o ensino. Tal como escrevi na altura, tive muita pena que o realizador tivesse subvalorizado a capacidade e o talento da protagonista para expressar e, consequentemente, fazer espoletar em nós emoções em catadupa, preferindo dividir - o que vi como uma subversão - essa missiva entre a atriz e a música introduzida. "Inocuamente desarranjados pela batida da música frequente, de volume instável, com um (des)arranjo metálico, que nos quer levar corredores afora para algum lugar ou momento, que não chega a ser nenhum", pode ler-se nesse meu escrito sobre o filme de Çatak. Diria até que de todos os filmes sobre os quais escrevi até hoje, 'A Sala de Professores' é mesmo o meu 'travelling de Kapò' - a célebre crítica de Jacques Rivette, 'O travelling de Kapò', que depois o crítico Serge Daney faria dela um verdadeiro mandamento, sobre a abjeção no cinema, a propósito do filme do italiano Gillo Pontecorvo, 'Kapò: Uma História do Holocausto' (1960), em que um movimento de câmara enquadra o cadáver do homem eletrificado no arame farpado, promovendo e exponenciando assim o horror daquela morte -, tamanha é a gula de exacerbar as emoções, freneticamente, até conseguir nocautear-nos por completo. E depois lembrei-me, já depois desse filme, que voltei a ter uma experiência de contornos similares quando vi 'A Tempo Inteiro' (2021), do francês Eric Gravel, em mais uma epopeia no feminino, em que uma mulher (divorciada) com dois filhos a seu cargo luta contra todas as adversidades para cumprir o seu papel: de mãe e de profissional. Gravel recorre à música eletrónica para acelerar o já de si mais que acelerado ritmo da protagonista, entre casa, transportes, trabalho e afins: saímos esmagados do filme, com a cabeça feita num oito, porque o som que a música introduziu desnorteou-nos e impediu-nos de sentir o filme - e já nem falo em pensar (o filme). Bem mais sensata, perspicaz e sensitiva, Delphine Deloget - realizadora francesa estreante em longas-metragens de ficção - percebeu que bastaria entregar a Virginie Efira - (eu) conhecia só de dois filmes de Justine Triet (Sybil [2019] e 'Na Cama com Vitória' [2016]) - a responsabilidade de carregar e transportar (quase) todas as emoções (s)em 'Nada a Perder' (2023).
Virginie Efira dá corpo a Sylvie, mãe solteira com dois filhos ao seu cuidado - o adolescente a caminho da juventude, Jean-Jacques (Félix Lefebvre), e o irmão mais novo, de oito anos, Sofiane (Alexis Tonetti) -, um corpo repleto de emoções, que age e reage quase sempre com o coração, um coração a transbordar do(s) peito(s) e a dar ordens à cabeça: um corpo como arma pronta a retaliar. Sempre que o corpo de Sylvie acelera, a câmara acelera em sintonia, segue-lhe o ritmo; quando o quadro aflitivo se intensifica, a câmara ora se apressa nos travellings laterais pelas ruas, ora se cola à nuca e é arrastada por Sylvie em busca de justiça: a sua justiça. O pequeno Sofiane queimou-se a fritar batatas durante a noite, sozinho em casa - a mãe estava no bar a trabalhar e o irmão nas aulas de trompete -, acabou por ser socorrido por Jean-Jacques, também menor de idade, que o conduziu, literalmente, até ao hospital, num carrinho de supermercado. Este é o evento, logo a arrancar o filme, que espoleta o surgimento dos serviços de assistência social para crianças na vida deste trio familiar - que às vezes passa a quatro, quando o irmão de Sylvie, desgarrado e bem bebido, pernoita por casa -, e dá-se aquilo que em Portugal seria uma intervenção da Comissão para a Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ).
Num dos raros momentos em que a câmara estaciona, observamos dois planos fixos consecutivos, curtos, que retratam fielmente aquilo que vamos observando ao longo do filme, no que respeita à dinâmica da família - a mãe e os dois filhos e cada um dos filhos. Com os três de frente para a câmara, com Sofiane no meio - isto ainda antes de ser institucionalizado e de seguir, depois, para uma família de acolhimento -, debruçados numa grade, um varandim, Jean-Jacques vai fazendo pedagogia com o irmão mais novo, educando, perante o olhar cúmplice e de consentimento da mãe, quase como se fosse um pai, um encarregado de educação; entretanto, imediatamente a seguir, a câmara, ainda fixa, mostra-nos ao longe os três no mesmo local, ou seja, numa espécie de coreto - em Brest, na Praça Wilson -, como um cogumelo gigante em betão, com um grande chapéu-teto por cima da cabeça deles: e ali estão os três juntos, abrigados por um teto, ainda que faltem paredes na estrutura - uma pouco à semelhança da estrutura familiar deles, onde não falta um teto protetor de amor, ternura, cumplicidade, mesmo com as lacunas que existam por preencher. E aqui, neste ponto, versa a injustiça que Sylvie sente na pele e que nós, espectadores, observamos, mesmo que a legalidade tenha sido ferida - a criança de 8 anos sozinha em casa - , e daí tenha resultado um acidente, não estamos perante um cenário de leviandade, negligência, maus tratos, pelo contrário até, e as lacunas existentes são fruto das circunstâncias - a sempre difícil concertação entre mundo laboral e família, muito mais complexa ainda para famílias monoparentais.
Do outro lado da barricada estão os assistentes sociais, e depois um juiz, que têm leis e procedimentos para cumprir visando o superior interesse da criança. E o filme faz por não desumanizar as pessoas que vão a casa, que acompanham os processos, deixando a falta de sensibilidade mais para o sistema em si, conferindo até uma dose acentuada de bondade e boa-vontade à responsável dos serviços de assistência social que tem de lidar diretamente e pessoalmente com a raiva, a fúria, os impulsos e um corpo de emoções a transbordar. Na verdade, o turbilhão de emoções e descontrolo de Sylvie - tão vorazmente vertido por parte de Efira - abafa por completo o debate e a reflexão acerca do tema, incluindo a decisão do juiz, ou a existência de um grupo de pais (reunidos em círculo como os Alcoólicos Anónimos). Sylvie dinamita todo esse espaço na sua busca desenfreada por respostas, num inconformismo que não tem tempo para partilhas, reflexões e esperas. E com o evoluir do filme percebemos melhor o porquê de uma galinha aparecer no bar onde Sylvie trabalha, que depois vem para a casa da família - sim, Sylvie é uma mãe-galinha que quer os seus filhos consigo, em casa, e que cuida deles sem ajuda do pai; tal como a galinha cuida dos ovos que viram pintainhos sem precisar da ajuda de um galo.
Sendo este um filme verdadeiramente de emoções, que existe essencialmente para nos fazer sentir, não significa porém que o debate sobre este tema tão importante na sociedade, para as famílias, para as crianças, mas também para as CPCJ e a Justiça, não possa e deva ser feito pós-filme, preferencialmente com testemunhas privilegiadas, digamos assim.
Rien à Perdre (2023), de Delphine Deloget
Visionado em Filmin Portugal
Adquira o Livro NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O ANO ZERO
À venda em Portugal
À venda no Brasil
'Nada a Perder', de Delphine Deloget (2023)