DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 14 de junho de 2024

'O Movimento das Coisas', de Manuela Serra: uma ode ao ciclo do trabalho de mãos


Talvez 'Daguerreótipos' (1975) seja mesmo o meu filme preferido de Agnès Varda. Retrato e retratos de movimento do quotidiano de pessoas comuns, comerciantes e clientes, numa rua, a Rua Daguerre, a rua de quase uma vida inteira de Varda, em Paris. Na padaria, no talho, na mercearia, ou na barbearia, assistimos às rotinas daqueles que trabalham com as mãos - mãos de arte, força ou engenho - para servir necessidades de outros, perante a presença de uma câmara que observa, um corpo estranho que não quer fazer-se sentir. A certa altura, Varda decide criar uma simbiose entre as palavras proferidas por um ilusionista, num espetáculo, e as imagens dos movimentos dos seus comerciantes nas lojas da Rua Daguerre, conferindo-lhes assim, a todos eles, uma aura de magia. Da vida urbana para a vida rural, da cidade para o campo, das lojas de comércio para o trabalho da terra, mas com pessoas igualmente comuns, em movimento entre trabalho e vida, saltamos para outra câmara que também observa e não quer fazer-se sentir, a câmara de 'O Movimento das Coisas' (1985), de Manuela Serra - escolha DA VAGA REALIAZADOR(A) DO MÊS, de Junho, com a sua única obra fílmica -, em Lanheses (Viana do Castelo). O trabalho de mãos e o seu ciclo, um ciclo de vida, é a força motora; mãos hábeis, enérgicas, ativas e maleáveis, não raras vezes focadas pelo zoom da câmara de Manuela Serra, tal como [Robert] Bresson fez com as mãos dos seus protagonistas em 'O Carteirista' (1959), na arte de roubar carteiras sem ser sentido; ou em 'Fugiu um Condenado à Morte' (1956), na habilidade em atar nós e fazer cordas, e em abrir fendas à colher. E se Varda serviu-se do ilusionista para conferir magia aos seus 'daguerreótipos', Serra serviu-se da natureza para transformar em poética(s) aquela(s) vida(s): do sol a dourar a espiga do milho e a transformar em pepitas douradas a moinha que sai do crivo (do milho), do cinzento opaco que liga céu e rio, às cores quentes que emanam das folhas das videiras, estrada abaixo.


Mungir as vacas para obter o leite do pequeno-almoço; preparar e amassar a massa para cozer o pão no forno de lenha; cortar a erva para alimentar os animais: os bois que puxam o arado que lavra a terra para a sementeira, as vacas que dão o leite, os porcos que mais tarde darão a carne; semear a terra para colher depois; tirar água da nora para lavar roupa no tanque, roupa essa que depois é estendida; colher as couves e cortá-las de seguida para o caldo que há de vir; lavar a loiça e enxugar as mãos, depois do repasto à mesa, pois quem não é para comer não é para trabalhar - ouvia eu muitas vezes na minha aldeia -; varejar os castanheiros para apanhar as castanhas e queimar os ouriços com o resto que haja para arder; debulhar as espigas e dar à manivela para crivar o milho, que por ali parece ouro, e à volta dele junta-se o povo, soltam-se as cantigas e bebe-se vinho à malga - certamente o verde tinto que engrossa lábios não acostumados -, mas do milho virá também o dinheiro em forma de notas muitas que valem pouco num país a viver por esta altura um segundo resgate do FMI, FMI que deu nome à célebre música de José Mário Branco, ele que, por sua vez, deu e compôs a música para 'O Movimento das Coisas', mas essas notas de escudo têm de chegar para pagar a côngrua - uma espécie de imposto eclesiástico, uma obrigação de crente, não é à toa que no interior do quarto que nos é mostrado só a imagem da santa e o crucifixo acompanham o relógio que dá horas e manda trabalhar -, notas que vemos saírem das mãos enquanto o pároco debita dizeres em latim; tudo isto é um ciclo de vida, que gira como as rodas das bicicletas, das carroças, das motas, ou dos carros de mão que observamos na vila em suaves e ternas panorâmicas.


Com uma câmara que não quer ser invasiva, o zoom aproxima, sem chegar muito perto, rostos e movimentos, dentro e fora de casa, mas também aproxima a torre do sino que toca ao longe e se ouve como estando perto, ou a fábrica com a chaminé que expele o fumo denso, que dá plano final ao filme. Tão longe e tão perto, assim parece estar um futuro de contraste, incerto, nebuloso, um futuro que a jovem que apanha o autocarro para trabalhar numa fábrica de costura de roupas parece, de algum modo, já transportar com ela, tanto assim é que quando sai do autocarro a câmara fixa e congela, sonorizada por uma nuance de nota musical a remeter para um suspense de algo que não vem no filme, mas que há de vir na vida.


'O Movimento das Coisas', de Manuela Serra (1985)

Visionado em Filmin Portugal

'O Movimento das Coisas', de Manuela Serra (1985)


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