DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 7 de junho de 2024

Passion, de Ryûsuke Hamaguchi: amigos e mulheres


Que me perdoem os mais puritanos, mas parece-me deveras pertinente puxar o futebol, na figura do treinador, para estabelecer aqui um paralelismo com o cinema, na figura do realizador, naquilo que é o contributo dos outros, geralmente mais antigos, num processo de influência, com inspirações e referências, para a criação e construção progressiva de um cunho identitário, de um estilo próprio, ainda que em transformação constante. No futebol, estou a pensar no treinador Pep Guardiola - quem muito admiro - e em como ele moldou a sua ideia e o seu estilo de jogo sob influência da ideia do 'Futebol Total', protagonizada pelo Ajax de Amesterdão e pela seleção holandesa, especialmente na década de 70, com o treinador Rinus Michel - ele que fora influenciado pelo seu antigo técnico, o britânico Jack Reynolds, e que influenciaria de seguida, decisivamente, Johan Cruyf, que, por sua vez, estenderia essa influência a Guardiola. Pensamento e ideias geram identificação e fazem escola, no futebol como no cinema, no treinador como no realizador. Em Passion (2008) [‘Paixão’] - o filme-tese de graduação de Ryûsuke Hamaguchi, na Universidade de Belas Artes e Música de Tóquio, recuperado para exibição por estes dias no Cinema Nimas - brota inequivocamente, de modo bem saliente, a influência do cinema de [John] Cassavetes - que o próprio Hamaguchi já reconheceu por diferentes ocasiões - numa mescla com laivos do cinema de [Éric] Rohmer, [Michelangelo] Antonioni e [Yasujiro] Ozu. Provavelmente haverá ainda marca e influência de outros realizadores que, fruto do meu conhecimento limitado, não consegui descortinar. Pensando nos seus recentes filmes Evil Does Not Exist (2023) - aqui trazido em DA VAGA DE SALA Especial LEFFEST - e o premiado Drive My Car (2021), constatamos que a influência dos outros (realizadores) está já bem mais diluída no seu molde, emergindo claramente um estilo Hamaguchiano.


Tomoya (Ryuta Okamoto), Kenichiro (Nao Okabe) e Takeshi (Kyohiko Shibulkawa) são três homens amigos, ou amigos homens, que largam as mulheres (com quem casaram ou estão prestes a casar) após uma festa de aniversário para darem azo a uma longa noite não dormida, repleta de fisicalidade, correrias, deambulações, nas ruas e nos autocarros noturnos, seguidos sempre por uma câmara disposta a acompanhar ritmo e movimento, frenética e desenfreada sempre que os corpos assim pedem; e, claro, vem-nos à cabeça 'Maridos' (1970), de Cassavetes, naquela memorável jornada dos três amigos que fazem o luto de um (quarto) amigo - acabado de morrer - regado a álcool, mulheres, jogo e cantorias. Não, em Passion não temos o mesmo grau ou nível de álcool, decadência, degradação, brutalidade ou masculinidade fervilhante e tóxica que vemos nas interpretações ferozmente improvisadas por Ben Gazzarra, Peter Falk e o próprio Cassavetes. Mas a paragem na noite em casa de Takako (Fusako Urabe) e da amiga escritora de Best Sellers, para copos, cigarros e conversas, remete-nos também para 'Rostos' (1968), outra obra de Cassavetes, lembrando a casa-bar de Jeannie (Gena Rowlands), onde John (Richard Forst) e outros afogam mágoas e mergulham em paixões; e aqui a câmara vai-se encostando aos rostos, em grandes planos, enquanto os três amigos e as duas mulheres falam sobre cães e gatos, e as suas diferenças comportamentais. O casado Takeshi enfeitiça-se pela escritora que rapidamente lhe foge das mãos pelas ruas - agora e ali - escuras de Tóquio, enquanto Takako, a outra mulher da casa, forma um triângulo geometricamente desenhado com Tomoya e Kenichiro, no terraço, num jogo onde passam um disco voador de mãos em mãos, como se estivessem a passar uma intenção, a intenção de cada um deles, que depois o filme vai revelando: Takako a passar a paixão a Kenichiro; Tomoya a passar a paixão a Takako; Kenichiro a passar a paixão de Tomoya a Takako para ter campo aberto para passar a sua paixão a Kaho, a delicada noiva de Tomoya, que a câmara de Hamaguchi capta de forma singela, deslizando desde as unhas das pontas dos pés, que estão sob corte dela, pelas pernas acima, lentamente.


E na manhã seguinte, ainda sem pregarem olho, Tomoya e Kenishiro fazem outro triângulo, desta feita com Kaho, uma mulher sob influência (emocional) que aceita a violência que lhe é imposta pelo amor não correspondido, pelo desapego afetivo, pelas mentiras e pelo abandono do noivo, sob o olhar turvo, sofrido, de Kenishiro, que a vê desfalecer e estatelar-se no chão. A violência que vemos Kaho debater com os alunos na sala de aulas onde é professora tem depois expressão, numa fisicalidade à la Cassavetes, entre Takeshi, o abrutalhado dos três amigos, o homem que trabalha numa fábrica de carne, e Takako, numa cena com semelhanças a outras de 'Rostos'; 'Maridos'; ou 'Uma Mulher Sob Influência' (1974). E para não nos sufocar, Hamaguchi faz-nos lembrar o mestre Ozu quando mete planos gerais da cidade - repetindo planos - com a arquitetura urbana-habitacional, por vezes com comboio a passar, como espécie de separadores entre o interior e o exterior, ou entre cenas, e, também, ao não prescindir do ruído constante dos carros em Tóquio - a voz da cidade -, que ouvimos sem nunca ver.


Já as paixões sem correspondência, com os homens a fazerem por conquistar essa mesma correspondência das mulheres, várias nesta narrativa, bem como possíveis inversões de pares românticos, e ainda a paixão momentânea, de acaso, tudo isto sustentado por certos momentos em que há tempo e quietude da câmara para o discorrer dos diálogos, levaram-me para Rohmer, deambulando por 'Conto de Inverno' (1992); 'Conto de Verão' (1996); Conto de Outono' (1998); 'Pauline na Praia' (1983); ou 'O Amigo da Minha Amiga' (1987).


E num segundo amanhecer em Tóquio, após nova noite em claro, a câmara estaciona uma mão-cheia de minutos à espera que as vozes da conversa que vamos ouvindo, entre Kenishiro e Kaho, ganhem corpos, enquanto o fumo branco, denso e espesso que a chaminé exala faz-nos viajar para a arquitetura industrial e a atmosfera de 'O Deserto Vermelho' (1964), de Antonioni. Dali a câmara só mexe lenta e compassadamente, num plano-sequência, para melhor enquadrar a chegada aos nossos olhos do par, um par que ele muito quer e que ela gostaria de querer transformar em romântico. O ruído permanente e de fundo das turbinas, pontuado pelo grasnar das gaivotas, é sobreposto pela chegada ou partida de um cargueiro: tempo de decidir o rumo da viagem, ficar ou partir. Logo de seguida, o longo plano finda e dá-nos a resposta. 


No final, a história daquelas vidas não muda com o filme; acaba como começou. É como se o filme fosse apenas um fragmento de vida daquela história. Talvez aqueles amigos e mulheres tenham servido apenas de cobaias para o exercício de Hamaguchi condensar e mesclar influências para ir construindo o (seu) molde.


Passion, de Ryûsuke Hamaguchi (2008)

Visionado na Sala do Cinema Nimas

'Passion', de Ryusuke Hamaguchi (2008)


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