A Traveler's Needs, de Hong Sang-soo: Huppert a desabrochar emoções
Foi a acelerar a fundo, num ziguezaguear entre carros, que subi a Avenida Fontes Pereira de Melo para depois descer a Avenida da República e finalmente encostar a mota junto à Culturgest, apertando de seguida o passo para chegar a tempo do primeiro plano do filme. Ufa, consegui! Logo depois pensei, bem, tratando-se de Hong Sang-soo a probabilidade de o plano de abertura ser longo, de minutos, era grande, e, no máximo, perderia só um pouco de diálogo, pois a câmara estaria certamente estacionada no mesmo espaço-imagem. E assim foi, só após uma mão-cheia de minutos a câmara largou a mesa e a estante de livros - onde Isabelle Huppert (Iris) e a sua aluna de lições de francês conversavam - para, numa panorâmica, mostrar o agora tocar do piano da jovem sul-coreana, bem como a saída de Iris com o colocar de chapéu na cabeça. A Traveler's Needs (2024) [‘As Necessidades de Um Viajante’], o mais recente filme de Hong Sang-soo, esteve na secção Silvestre do IndieLisboa, esta terça-feira. Com o mesmo vigor que acelerei para ver o filme, decidi abrandar após o visionamento, e dar-me tempo antes de escrever sobre o (filme) que vi. Tempo para deixar A Traveler's Needs entrar e misturar-se com as minhas memórias de outros filmes de Hong Sang-soo, umas (memórias) e uns (filmes) mais presentes do que outros, entre: 'A Mulher que Fugiu' (2020); 'O Dia Seguinte' (2017); 'Sítio Certo, História Errada' (2015); 'Noutro País' (2012) - este também com Huppert -; e 'No dia em que Ele Chega' (2011).
Nesta nova viagem pela Coreia do Sul, Huppert - simples e genial na habilidade em ser mulher do Mundo, absorvendo, enxertando, ligando modos de ser, de estar e de viver - confere um humor, desconcertante e inusitado, uma leveza e uma frescura, por onde está, fica e passa - dando corpo ao verde do casaco e ao padrão colorido do vestido -, características nunca tão pronunciadas nos filmes anteriores (que vi) de Hong Sang-Soo. Não abalando com isto, minimamente, a estética sempre patente de um cinema clean - nítido, claro, límpido - e que considero mesmo de terapêutico, onde os longos planos fixos, a enquadrarem todos os protagonistas de cada conversa (dois; ou três) sem necessidade de movimento de câmara, permitem-nos ficar absortos; por vezes somos chamados à atenção pelo focar do zoom nos rostos, corpos ou objetos; ou pela abertura de campo com panorâmicas para vermos mais sem sairmos do sítio. As mais do que identitárias repetições de cenas, com pessoas e/ou lugares e/ou conversas e/ou gestos, de Hong Sang-soo, e que Huppert vai levando a cabo, acabam por ser superadas, relegadas, de certo modo, pelas presenças de Huppert/Iris (chamemos-lhe de Iris daqui em diante) com as pessoas que vai encontrando, nos diferentes locais, com as conversas, as interações, e pelo seu efeito de desabrochar emoções variadas, em todos eles. É como se a repetição da presença dela, em si (e no que isso implica), estivesse acima da repetição das cenas. No seu papel de professora (particular e de circunstância) de francês para sul-coreanos, Iris recorre e socorre-se, simultaneamente, de uma língua e linguagem de emoções como método singular, inquisitivo, criativo, inusitado e, no fim, bem-sucedido no agarrar dos alunos, desabrochando-lhes emoções. Assim é com a jovem, no primeiro encontro/aula, que reconhece a sua insatisfação por não tocar melhor piano, de modo a virar pianista; idêntica reação é confidenciada pela mulher do casal que Iris visita no segundo encontro/aula, depois de tocar guitarra - a repetição de método de Iris e de cena de Sang-soo produzem o mesmo efeito em pessoas diferentes. Aproximando-se quase de sessões psicanalíticas - e bem que Huppert/Iris fez-me lembrar Diane Keaton e o próprio Woody Allen, no cinema deste -, as despedidas daqueles dois encontros/aulas/conversas (os primeiros entre Iris e os alunos) são ainda antecedidas pelo choro de saudade do pai, de uma; e pelos queixumes do marido, de outra.
E quando no segundo encontro/aula/conversa do filme, em que Iris e o casal sobem ao terraço para prosseguirem a falar ao ar livre enquanto bebem avidamente o leitoso e branco - branco como o cão da casa que um zoom vai buscar para nos mostrar harmonia cromática -, mas alcoólico, makgeolli (tradicional vinho de arroz), vemos três chaminés extratoras/ventiladoras a rodarem repetitivamente e ficamos à espera de um III ato, um terceiro encontro/aula/conversa - isto enquanto assistimos o repetir de perguntas e respostas do encontro/aula/conversa que vivêramos com a aluna anterior, precisamente após a mesma alteração do interior para o terraço/varanda das casas e, por conseguinte, de seguida, para o exterior onde outro zoom traz outra vez a pedra com o poema gravado, desenhando um triângulo antes e um quadrado agora, com os protagonistas. O III ato vem, mas num formato diferente. E aqui sobressai a convicção de que a repetição da presença de Huppert/Iris está acima da repetição das cenas. Já não é como professora na casa de desconhecidos, a satisfazer necessidades de (futuras) viagens deles, mas sim na casa onde está hospedada por um gentil rapaz que se encantou por ela – "ficaste louco, perdeste a cabeça por ela", assim ralha com ele a mãe - que Iris, feliz pela realização das suas necessidades de viagem, abraça desalmadamente o atónito rapaz e desabrocha mais emoções, quer o encanto e o bem para a autoestima, nele; quer o ciúme e o despertar para a necessidade de cuidar (do filho), na mãe.
Na terceira incursão à varanda/terraço, numa terceira casa diferente, desta feita a solo, Sang-soo substitui as conversas pela harmonia visual, pelo verde do chão e das paredes, o mesmo verde do casaco de Iris, estendendo jardim ou bosque à sua figura florida, leve e fresca. E como terá ido ela parar à Coreia do Sul? A mãe do jovem que a hospedou diz-lhe para ele questioná-la, receando perigos ou problemas, mas ele diz-lhe que não se importa, não quer, não precisa de saber. Diria que nós também não.
A Traveler's Needs, de Hong Sang-soo (2024)
Visionado no IndieLisboa, Culturgest
'A Traveler's Needs', de Hong Sang-soo (2024)