DA VAGA DE SALA - Especial IndieLisboa

Stéphane Pires • 28 de maio de 2024

'Greice', de Leonardo Mouramateus: a arte de atrair e a sua preservação


Nem tudo o que parece é. Fazemos suposições e presunções, alicerçadas em estigmas e preconceitos, mas também em histórias de bons e maus da fita, de heróis e vilões, de ricos e pobres, de homens e mulheres, e, até, de portugueses e brasileiros. 'Greice' (2024), de Leonardo Mouramateus, brasileiro radicado em Portugal - filme exibido no IndieLisboa, esta segunda-feira no Cinema São Jorge, na Competição Nacional -, desconstrói essas suposições e presunções, mostrando-nos que não há pessoas só boas, nem pessoas só más. As pessoas são feitas de coisas boas e más; umas com mais coisas boas, outras com mais coisas más, também, e muito, de acordo com as circunstâncias. A arte de atrair e, consequentemente, a sua preservação (preservação da atração conseguida) é o modo de vida de Greice (Amandyra), ela que dá corpo, luz e história ao filme, e nome, também. Quando a certa altura ouvimos a irmã mais nova de Greice a falar dos planetas do Sistema Solar e do seu movimento orbital em torno do Sol, é em Greice que pensamos, no seu sorriso aberto e luminoso combinado com um olhar vivo que se dá ao outro, e em como ela é o Sol, com os demais a moverem-se em seu redor.


 Se a Greice, a protagonista, cabe a arte de atrair e a sua preservação, por sua vez, ao autor de 'Greice', filme, cabe a arte de compor e revestir uma atmosfera que nos mantém ligados q.b. a uma ideia de perigo, de tragédia, de mau fim, que paira sem nos absorver, sem nos consumir. Fá-lo, e fá-lo bem, desde o início, com o ecrã negro em cima do primeiro diálogo, logo seguido do escuro nos corredores da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), sonorizado a preceito por uma composição de música eletrónica que nos faz entrar com um apetecível suspense no filme, por entre estátuas e correria humana, acompanhada de gritos no feminino. E, mais à frente, quase como um separador do filme, entre a passagem da narrativa de Lisboa (uma espécie de primeira parte) para Fortaleza, Brasil (uma espécie de segunda parte), com a performance artística de Clea (Isabel Zuáa) - artista musical agenciada, criativamente, por Greice -, que com as majestosas botas faz a poeira parecer nuvens a adensarem na cabeça que vai desaparecendo de Greice, dançando, cantando e erguendo as suas longas tranças para a gravação de um videoclipe em que o fundo são imponentes grades metálicas: uma clara imagética de prisão, destino possível para a agente e amiga Greice, agora que 'fugiu' de Lisboa para Fortaleza. E, já no Brasil, com Greice a viver uma espécie de autoimposta prisão domiciliária num hotel, artisticamente, uma vez mais, Leonardo Mouramateus mostra-nos Greice no quarto desse hotel com uma máscara vermelha - provavelmente para tratamento de pele -, como uma cara ensanguentada, a ouvir a mensagem gravada e deixada pela mãe, acerca de um sonho que teve com ela, que metia luzes de polícia. Mãe, que, na tal preservação de atração levada a cabo por Greice, nunca soube que esta tinha deixado Lisboa (onde estuda escultura na FBAUL) e voltado ao Brasil, apesar das frequentes videochamadas.


É pois na sua exímia arte de atrair que Greice conhece Afonso (Mauro Soares), ainda em Lisboa, um jovem herdeiro de fortuna que vive numa mansão com uma piscina que Greice e a amiga e housemate procuram num Verão tórrido. A meio de uma disputa judicial da herança com irmãos, filhos de uma outra relação do pai (de Afonso), Greice desilude-se com a postura sobranceira e desumana do endinheirado português, com quem namora durante um breve período. Juntos no local do crime acidental - não um crime de sangue ou que meta armas -, ambos são confrontados pela FBAUL para apurar responsabilidades: acusam-se mutuamente um ao outro. Sem confissões de culpa, abre-se investigação, ambos são suspensos temporariamente, e o juízo fica a nosso cargo, enquanto espectadores; como não vimos, só podemos supor ou presumir. O desfecho é revelado mais adiante, só depois de vermos Greice estender a sua arte de atrair, e a respetiva preservação, no Brasil, com Enrique, o omnipresente empregado de hotel, com a prima Marcinha, com a irmã, com Naldo, o amigo advogado, com o responsável pela atribuição do visto, que carimba a sua arte. Como resistir? Não dá para resistir. Pelo meio, o filme concede-nos ainda um cheirinho do Brasil popular, de dança e música na rua, num longo plano-sequência pela quadra. 


Naquela que é já a terceira longa-metragem deste jovem realizador, de apenas 33 anos - já com um percurso robusto e reconhecido em curtas -, sobressai a sobriedade, o humanismo, a vontade e capacidade de contar bem uma história sem ter de enfatizar, empolar, sem necessitar de grande agitação ou frenesim, sem recurso a armas, sangue e violência, antes com notas de humor, conferindo primazia às conversas, sobretudo a pares, fixando a câmara e respeitando o tempo. Diria que vi certas semelhanças com o cinema de
Laís Bodanzky ou de Sandra Kogut, olhando particularmente para 'Como Nossos Pais' (2017) e Três Verões' (2019) - ambos já trazidos aqui em DA VAGA DE CASA. E 'Greice' não deixa de versar também sobre temas de índole mais social, digamos assim, quer na questão dos jovens brasileiros que, de certa forma empurrados para fora pelo seu país, procuram um futuro com que sonham no exterior, muitas vezes sem apoio familiar, quer na problemática associada à burocratização do visto e da autorização de residência.


'Greice', de Leonardo Mouramateus (2024)

Visionado no IndieLisboa (Cinema São Jorge)

'Greice', de Leonardo Mouramateus (2024)


Compartilhar

'3 Rostos'
Por Stéphane Pires 20 de fevereiro de 2025
'3 Rostos', de Jafar Panahi: três mulheres, três tempos, três sombras
'A Semente do Figo Sagrado
Por Stéphane Pires 17 de fevereiro de 2025
'A Semente do Figo Sagrado', de Mohammad Rasoulof: fé, submissão e obediência absoluta
'Nada a Perder'
Por Stéphane Pires 6 de fevereiro de 2025
'Nada a Perder', de Delphine Deloget: um corpo de emoções como arma
Mais Posts
Share by: