Following the sound, de Kyoshi Sugita: a vida como uma omelete
Expressão. A expressão está acima da narrativa, diria mesmo que substitui a própria narrativa, toma o seu lugar em Following the Sound (2023) [‘Seguindo o Som’], do japonês Kyoshi Sugita, exibido na secção Silvestre do IndieLisboa, este sábado na Culturgest. A expressão das pessoas, a expressão do movimento urbano (em Tóquio) e a expressão da natureza que toca na cidade, tudo isto por meio de ruídos, silêncios, olhares, imobilidade, gestos: manifestação do viver, do ser, do observar, do sentir, do gostar, do apreciar, do amar, do dar, do cuidar, do celebrar, do olhar para si (para o seu interior). E nós, espectadores, como nos manifestamos? Absorvemos e procuramos identificação, uma certa correspondência, em nós e nos outros com quem vivemos, em diferentes espaços e momentos. E é neste exercício-processo, enquanto agente ativo, pelo pensamento, pela memória, pela imaginação, que fui gerando uma simbiose entre o meu viver e o viver observado para construir uma narrativa para Following the Sound. Desconhecendo as obras anteriores de Kyoshi Sugita, foi no cinema do sul-coreano Hong Sang-Soo que a minha mente foi poisando, aqui e ali, ao longo filme, quer pelo papel de criador-descodificador de história conferido ao espectador, de certa maneira, por meio de repetições; quer pela estética; quer pelo lado terapêutico que o cinema de ambos nos confere, durante e depois.
Há um som que é ouvido pela jovem Haru (An Hogawa) em vários momentos do filme - e a certa altura partilhado com a desconhecida que depois vira amiga, Yukiko (Yukko Nakamura) - que nunca chegamos a ouvir. Um som que só sai pelos auscultadores de um velho leitor/gravador de cassetes que as mãos agarram com firmeza no plano que abre o filme; uma caixa de labirinto sonoro que ela parece querer abrir, descodificar, decifrar, para de algum modo chegar a algo ou a alguém, ou ficar mais perto desse algo ou desse alguém; sabemos apenas que o som que sai daquela(s) cassete(s) terá semelhanças com o ruído da água que corre pelo ribeiro ou riacho, e, como tal, este é o primeiro som que ouvimos, e que se colará ao filme, e a Tóquio, fazendo-se ouvir nos intervalos dos carros e dos comboios que passam. Além de carros e comboios há também a mota, que nesta Tóquio parece ser única e a única, a mota de Yukiko que transporta as duas em passeio; de tão ruidosa parece abafar e condensar todo o som urbano no seu tubo de escape, mas, ao mesmo tempo, respeitando o movimento vagaroso, pausado, de todo aquele viver que o filme vai refletindo, onde é conferido espaço e tempo aos momentos e aos gestos. Um dos belos exemplos disso é o caminhar de Tsuyoshi (Hidekazu Mashima) pela rua - um homem de quem Haru se aproxima, e que, tal como Yukiko, pensa já ter conhecido Haru em algum lado ou momento - em que vemos a câmara a alternar de plano fixo para uma suave panorâmica, de modo a acompanhar o fazer da curva, para depois voltar a fixar no restante percurso dele. Voltando ao som, a única música tocada sai dos dedos ao piano de uma das alunas das aulas, aulas onde se ensaia o fazer filmes e o pintar retratos, formas de expressão; mas ouvimos também o cantarolar a duas vozes de Haru e Yukiko, na ponte, por cima do riacho, e a própria ponte faz ecoar um som metálico, um tilintar impressivo, fruto de toque humano nela; o comer e o beber, o degustar, sugar, triturar dos alimentos também pode ser mais ou menos ruidoso, lado a lado, à mesma mesa, em diferentes mesas.
E o que interpretar e decifrar dos olhares nos rostos que se cobrem muitas vezes pelas máscaras que a pandemia trouxe, deixou e arrastou? Parece que há algo por e para dizer que, ao mesmo tempo, não se consegue dizer, mas também é assim que se geram e alimentam silêncios, ou o falar para dentro, para o nosso interior; num longo plano fixo vemos Haru parar, junto a uma estrada movimentada, baixar ligeiramente a cabeça, e imobilizar, perante pessoas que passam, algumas deixando o rasto ruidoso do trolley, carros que se cruzam, comboios que se ouvem, numa introspeção necessária, que não necessita de pedir licença aos outros, à rua, mas apenas a si mesma; é como se fosse mais um poste fixo ali poisado, não para sempre, claro. Pausas como esta parecem causar-nos cada vez mais desconforto, por parecerem inoportunas, pelo que tendemos a programá-las para espaços e tempos planeados e considerados devidos, fazendo de nós um aparelho programável, dá que pensar; lembro-me do meu professor de latim, na secundária, parar a meio da leitura de textos para momentos de introspeção, com o rosto capturado por uma total imobilidade, assim ficava largos instantes até voltar com um 'retomemos'. E quando não se diz, às vezes age-se, tal como o pequeno bebé que abre a boca quando vê o pauzinho da comida no ar, ou como os cigarros que elas (Haru e outra rapariga) acendem e fumam a par, como libertando pensamentos e não-ditos pelas partículas do fumo que exalam.
Na verdade, com delicadeza, paciência, sensibilidade, cuidado e gosto pode fazer-se uma boa omelete, boa, sem deixar de ser simples. À primeira, feita pela anfitriã Yukiko, à segunda, gerada pelas mãos de Haru, e à terceira novamente por Yukiko, porque Haru assim solicita, carece desse cuidado, desse conforto, e Yukiko não se faz de rogada. Eis então envolvida, abraçada e apertada, por Yukiko, a omelete, mas também Haru.
Following the Sound, Kyoshi Sugita (2023)
Visionado no IndieLisboa (Culturgest)
'Following the Sound', de Kyoshi Sugita (2023)