'Estamos no Ar', de Diogo Costa Amarante: fantasias em três gerações
Sempre me pareceu profundamente perturbadora a ideia de adquirir e reservar um espaço num cemitério para alguém que ainda vive. Mais perturbadora ainda se torna esta ideia quando o espaço para sepultura está já edificado com uma campa ou jazigo, ao lado do marido ou mulher - consoante aquele que é o primeiro a morrer do casal -, muitas vezes até com o nome da pessoa viva já gravada - para poupar trabalho futuro -, faltando apenas selar com a data final, o dia da morte. Assim fui vendo esta realidade a acontecer no cemitério da minha aldeia transmontana e, depois de refletir algum tempo sobre este propósito das pessoas, cheguei à conclusão que, no fundo, aquelas gentes estão apenas a dar seguimento à crença católica na vida eterna, na vida para lá da morte, e se o casal se manteve junto na vida terrena, não há razão (aos seus olhos) para que se separe após a morte. Uma grande fantasia, digo eu. E esta é a primeira fantasia que nos mostra 'Estamos no Ar' (2024), estreia de Diogo Costa Amarante em longas-metragens, após várias curtas, destacando-se particularmente 'Cidade Pequena (2016), de uma estética arrebatadora, com que arrecadou o Urso de Ouro, em Berlim. Estreia também da Competição Nacional do IndieLisboa, esta sexta-feira no Cinema São Jorge. A fantasia do marido que morreu e deixou a campa pronta, ao seu lado, para a viúva, abre o filme, um filme que rapidamente salta das fantasias da morte para as fantasias da vida, sonhadas, vividas e sentidas em (e a) três gerações - avó, filha e neto -, em paralelo com a realidade do quotidiano.
O salto dos planos iniciais no cemitério - com a viúva Júlia (Valerie Braddell) e a amiga Conceição (Cucha Carvalheiro) - para o travelling dianteiro da mota que nos guia, leva-nos da morbidez da morte rumo à vertigem da vida - a imagem captada pela câmara no capacete, da mão que limpa a viseira do mesmo, remete-nos para os gestos dos pilotos de corridas de motociclismo ou de Fórmula 1 -, conduzidos por Vítor (Carloto Cotta), neto de Júlia. Vítor vai a caminho da materialização da sua fantasia, uma fantasia que veste camisa de farda de polícia e que tem correspondência à noite, num quarto de uma casa ao lado de uma loja de disfarces, onde o amante complementa a indumentária fantasiosa. A camisa de polícia tem chapa identificadora, mas o nome não é de Vítor, mas sim do vizinho Leonel (Pedro Almendra), o verdadeiro polícia, que, temporariamente desterrado da mulher e dos filhos, tem em Fátima (Sandra Faleiro), mãe de Vítor e filha de Júlia, a mulher-vizinha que lhe lava a roupa; e enquanto a máquina roda e lava a roupa, Fátima aconchega os seios, recentemente aumentados por cirurgia, e tem sonhos verdes, de esperança, com o vizinho polícia, ele que nas noites solitárias se entretém a olhar para os bichos da vida selvagem na TV; já Vítor anseia que o movimento da máquina cesse para vestir a farda de guarda-noturno em mais uma noite de fantasias, consumando, ao contrário da mãe - com quem vive -, os seus sonhos cor-de-rosa. Nestas noites de fantasias, ora sonhadas, ora vividas, ora sentidas, Júlia, no lar de idosos onde repousa, ouve a voz do marido ecoada por Conceição, com quem partilha o leito, e dá continuidade à vivência matrimonial com o falecido - até à eternidade, sem que ele tenha de esperar por ela na campa ao seu lado.
Trespassados por uma realidade do quotidiano também ela à boleia da fantasia, de um programa de televisão da manhã cuja voz estridente da apresentadora - qualquer semelhança com as Cristinas da realidade é pura ficção - arrebata e sustenta o ambiente do estúdio, onde Vítor é um dos figurantes na plateia, a sala de estar do lar de idosos de Júlia, ou ainda o salão da cabeleireira Fátima, reverberando a grande ilusão (não o filme de Renoir) da realidade. Uma ilusão que se estende às raspadinhas, que Júlia raspa com a mesma voracidade com que vejo e oiço esse raspar no café do bairro onde paro por vezes para beber uma imperial. Sim, o quotidiano precisa de ilusão, para não se tornar enfadonho, e, da mesma forma que nós, espectadores, quando vemos Fátima, em papel invertido no cabeleireiro, com a cabeça de prata para fazer o penteado escolhido, imaginamo-la pronta para embarcar numa viagem ao futuro, a mesma Fátima e a amiga (a sempre extraordinária Anabela Moreira) iludem-se com umas caipirinhas e um quase-mergulho na minúscula piscina de enchimento no pátio, mesmo que os prédios à volta, desgastados e envelhecidos, não concedam horizonte.
Guiados pelas fantasias de três gerações, seguimos bem-humorados e mais leves do que quando começamos (o visionamento) rumo ao desfecho, um desfecho em que Diogo Costa Amarante procura promover a reflexão nos instantes finais do filme, uma reflexão sobre o ciclo da vida, a partir da afirmação de Júlia: "A vida é só movimento"; e pintada com planos da água que corre; da máquina que lava; da recolha do lixo que leva o que não interessa. "Estamos no Ar", assim diz o nome do filme; se saímos do ar, fiquemo-nos por aqui.
'Estamos no Ar', Diogo Costa Amarante (2024)
Visionado no IndieLisboa, Cinema São Jorge
'Estamos no Ar', Diogo Costa Amarante (2024)