DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 25 de junho de 2024

'ONS', de Alfonso Zarauza: topografia sentimental de uma ilha


"As forças da natureza, a geometria do terreno, a qualidade da luz e do ar, distinguem esta terra como o berço da civilização. Exalações misteriosas parecem soltar-se do chão. Aqui estão os antigos e vulneráveis locais de culto, um precipício que enche a alma de medo respeitoso, uma caverna onde vivem espíritos misteriosos e poderes sobrenaturais. Diante dessas imagens primitivas da terra, a alma é transportada por uma emoção mística. A luz criou o mundo. A luz preserva-o e torna-o fecundo. A luz revela o mundo aos nossos olhos corporais para que a luz dos nossos espíritos possa, por sua vez, iluminar o mundo. Acima da geometria fixa e imóvel da terra estende-se o domínio da luz e do ar, em perpétuo movimento. A Estrela da Vida gira, vai e vem, produzindo assim o dia e a noite, dando-nos calor e frio, aguaceiros e secas, céus claros e escuros, nuvens, chuva e vento. A alma humana desfruta desta geometria móvel de ar e luz que constitui as estações", eis um breve excerto do texto reflexivo 'Uma Topografia Sentimental' (1935), do arquiteto grego Dimitris Pikionis, responsável pela intervenção nos caminhos e no entorno da Acrópole de Atenas. Em 'ONS' (2020), filme de Alfonso Zarauza, cineasta galego, Mariña (Melania Cruz) leva para a Ilha de ONS - a única habitada do Parque Nacional das Ilhas Atlânticas da Galiza - o trabalho de tradução da mencionada obra do grego Pikionis, mas no fim é o marido, Vicente (Antonio Durán), quem encontra ali, na Ilha, a sua topografia sentimental. O farol, com luz e ruído de vaivém; o mar, que se agita ou se acalma; o vento, mais ou menos omnipresente; o nevoeiro, que cerra; o sol, que espreita e abre sobre o mar; a falésia, que aponta o precipício; a impossibilidade; a escassez; o isolamento e a solidão apoderam-se de Mariña e Vicente, não da mesma forma.


Da noite escura cerrada, passando pela madrugada, até ao amanhecer, o plano (fixo) inaugural dá-nos o movimento luminoso e sonoro do farol, como uma câmara faz panorâmicas, para lá e para cá, roda para um lado e para o outro em direção ao oceano (Atlântico), para dar-lhe luz e som. Acomodados na primeira noite na Ilha em casa de Antón (Xúlio Abonjo) e Isabel (Marta Lado), o irmão e a cunhada de Mariña, antes de rumarem à casa onde ficarão alojados, Mariña e Vicente abraçam-se na cama perante o clarão da luz intermitente, de vaivém, que o farol acende e apaga pela janela. Uma luz que traga um caminho renovado é o que Mariña parece procurar para a sua relação com o marido, abalada por um evento que fez mossa na vida do casal, ocorrido há uns meses, e que aparentemente mergulhou Vicente numa letargia profunda que o seu olhar vazio transparece inequivocamente. Todavia, o farol, e a sua luz, é um paradoxo, quem o diz é Isabel - ela que se assume como uma das últimas faroleiras, ali vive com marido e filha na casa-farol, sendo responsável pela manutenção de um engenho que ainda resiste à automatização progressiva dos demais (faróis) -, lembrando que a sua luz guia no oceano escuro, mas o aproximar excessivo dela aumenta o risco de naufrágio.


E se vemos Mariña ávida por um renovar de energia(s), incansável nas suas corridas pela Ilha, com a câmara a privilegiar o foco no seu rosto, com um olhar que busca, por outro lado, vemos Vicente entretido num construir de novo, a absorver energia(s). Mariña corre para expurgar, limpar, purificar, libertar, seguindo, de certo modo, em contranatura ao modus vivendis da Ilha; Vicente senta-se a pescar, cozinhar, escovar os sapatos, dando-se ao tempo e ao ritmo da vida na Ilha. É como se a Ilha fosse sugando Mariña e energizando Vicente. E esta tendência cresce quando, por vontade de Vicente, decidem permanecer na Ilha durante o Inverno, em vez de regressarem a Barcelona, momento que a câmara nos mostra a partir da nuca de ambos: o olhar para o último barco a partir da Ilha e do horizonte. Tão cedo não haverá barcos a fazer a travessia, agora é tempo de ficar e resistir aos vendavais, aos ventos do norte e do sul, à agitação das marés, tempo também para refletir e prosseguir: pela renovação de Mariña ou pela (nova) construção de Vicente. Expectante que estava por acompanhar o desenlace da vida a dois e dos dois na pequena casa de pedra, na Ilha - com a minha mente a querer levar-me para a Ilha de Farö e o cinema de Bergman -, sob o barulho do vento, do mar e do farol, em conversas à lareira, eis que Zarauza surpreende e encarrega o mar de trazer uma 'creba' [que em galego significa uma destroço ou uma lasca de madeira trazida pelo mar] em forma de mulher para corporizar o fantasma que assola a mente de Mariña: a mulher-amante de Vicente que morrera há uns meses. Ao serviço de Mariña a câmara enquadra, com sensibilidade magistral, diga-se, em dois momentos / planos diferentes o triângulo (imaginário) que agora se forma. Na praia, Mariña e 'Creba' (Anael Snoek), sentadas de frente uma para a outra conversam, enquanto junto ao mar, ao longe na imagem, num recurso à maior profundidade de campo possível, vemos Vicente, de costas a pescar; já em casa, num plano-sequência que começa no vinil que Mariña põe a tocar, muito lentamente a câmara vai-se movendo, acompanhando o corpo de Mariña, que vem dançando, abrindo o campo para vermos aos seu lado 'Creba' e ao fundo, sentado junto à lareira, Vicente, que não resiste e caminha em direção a ela, ou a elas. Por esta altura estava rendido à opção do realizador galego em acrescentar 'Creba' à narrativa, só não esperava depois que 'Creba' fosse estendida até ao meio de Antón e Isabel, como que puxada pela força do farol.


Que pena assim ter sido. Uma âncora forçada que desvirtua, que seria para incrementar, dar mais, mas que acaba por retirar, dar menos, à história, ao filme.


'ONS', de Alfonso Zarauza (2020)

Visionado em RTP Play

'ONS', de Alfonso Zarauza (2020)

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