DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 5 de julho de 2024

'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho: aprisionados em casa, na rua e pela vida


É sob o intenso, incessante e perfurador ruído de um martelo pneumático que vos escrevo neste momento. A casa em frente está em obras profundas, iniciadas há umas semanas, mas ainda longe, muito longe, de estarem terminadas. Naqueles dias em que me levanto às 5h30 da madrugada e só regresso a casa ao final do dia consigo fintar as obras e as suas consequências, mas nos dias em que posso e quero dormir manhã adentro não há como, as 8 da manhã passaram a ser uma espécie de hora programada pelo mundo exterior para alarme, para despertar: não há vidros duplos que consigam abafar e contrariar a força que vem da rua. Um destes dias, de modo até simpático e cortês, o empreiteiro da obra esticou-me a mão, apresentou-se, e pediu-me se eu podia estacionar a mota noutro sítio ou se queria que eles a cobrissem com uns plásticos, de modo a não ficar cheia de poeira. Agradeci o pedido ou aviso e passei a deixar a mota mais longe de casa, quase na outra ponta da rua, mais longe de poder acelerar daqui para fora quando é necessário ou quando é desejável, o que por estes dias, que são já semanas, e que serão meses, esperando que não sejam anos, é deveras frequente - nada de grave, restam-me sempre as pernas e os pés para zarpar num fogacho. Entretanto, à porta do meu e dos restantes prédios da rua foram afixados avisos, colados a fita preta, e com o nome da empresa de construção civil responsável a negrito, a letras gordas, e a fazer de título único: 'SALVARIA' (passe a publicidade). E o que aqueles comunicados pretendem é precisamente salvar-nos, salvar-nos das poeiras que não queremos que entrem pelas nossas janelas, pelo que, só nos resta mantê-las fechadas, de segunda a sexta-feira, durante o horário de labuta. Sempre posso compensar com a abertura das janelas das traseiras onde o chilrear dos passarinhos é uma constante e um belo contraste, sempre posso ouvir mais música - e assim tenho feito, mergulhando numa playlist de várias horas do 'Pingue Pongue' (programa de rádio da Antena 3 aos domingos à noite), sob as escolhas de Tomás Cunha Ferreira e da fascinante Matilde Campilho, que encanta (sem cantar) pela sonoridade e por um je ne sais quoi da sua voz, pelo sentido das palavras que ouvimos dela, e também pelos escritos que li no seu 'Flecha', em que nos remete abundantemente e com muita facilidade para a construção de imagens mentais. Um tanto ou quanto aprisionado, em casa, na rua, e quiçá pela vida, assim pareço estar, tal como os aprisionados que vemos em 'O Som ao Redor' (2013), a longa-metragem de estreia do consagrado Kleber Mendonça Filho. É mesmo a partir da sua própria casa, da sua rua e do seu Recife (Estado de Pernambuco, Brasil) que Kleber nos mostra vidas aprisionadas dentro do quotidiano, também pelas escolhas, pelo passado, pelas raízes, pelo destino, pela incapacidade ou impossibilidade de partir; vemo-las circunscritas por muitas grades em portas e janelas - e pensamos no transfer dessas imagens omnipresentes para a mente -; vemo-las mergulhadas na inevitabilidade de se protegerem de um perigo, de uma ameaça que paira; vemo-las rodeadas por som.


As vidas de 'O Som ao Redor' são contemporâneas, de um presente urbano proliferado por arranha-céus que quase escondem o mar do Recife, como uma muralha, e que a câmara nos mostra em vários planos gerais, fazendo-nos aumentar a sensação de cerco, de aprisionamento, de um certo vazio (existencial). Porém o filme começa num repescar da memória, trazendo fotografias a preto e branco, de arquivo, com gentes reais e comuns, em trabalhos coletivos no campo, em aglomerados populares; mais à frente temos um plano muito fugaz em que um dos moradores da rua olha para trás e vê a mesma rua num passado distante, naquele passado que vemos nas fotografias iniciais; e há ainda um outro momento em que João (Gustavo Jahn) e Sofia (Irma Brown) entram num cinema antigo, abandonado, onde só resiste a fachada que nos diz 'CINE' e a grade (mais uma no filme) que serviria como janela de bilheteira, onde Kleber, recorrendo ao poder do cinema, introduz uma sonoridade hitchcockiana para dar vida momentânea, nas nossas mentes, àquele espaço que agora não passa de um descampado. Este olhar para o passado é acima de tudo uma chamada de atenção para importância da memória no processo de construção coletivo de uma sociedade, presente e futuro, mostrando-nos aquilo que se perdeu pelo caminho e o caminho (passe a redundância) que se está a fazer no figurino das cidades atuais. Recentemente, em 'Retratos Fantasmas' (2023), Kleber embrenhou-se profundamente no centro da cidade do Recife, na vida que foi e que já não é, e que é tão reflexo dos centros de tantas outras cidades: (maus) sinais dos tempos. 


E se no arranque do filme, na passagem do passado para o presente, ouvimos a composição instrumental (a cargo do DJ Dolores) que nos remete para o suspense, sinistramente, de certo modo, assim que o movimento da bicicleta e dos patins das crianças encaminham a câmara para o agora, são os ruídos da rua e de casa(s) que compõem o som, até um certo momento, perto do final, em que a batida compassada regressa para nos dizer que efetivamente algo ameaçador pode vir a acontecer: no momento em que o irmão de Clodoaldo (Irandhir Santos), chefe de seguranças privados que se 'voluntariaram' ou autoimpuseram para garantir a segurança na rua, se junta à equipa. Na rua, o som vem das máquinas que estarão algures a cortar ferro ou metal na construção de mais um prédio; o som vem do carrinho de música ambulante que um rapaz conduz pelas mãos; o som vem da sirene da polícia que passa ao de leve e sinaliza presença; o som vem de um carro que faz um pião na madrugada que os seguranças vigiam; o som vem do vomitar de alguém que bebeu demais durante a noite e cria suspeição pelo movimento que o carro faz, isto sob o olhar vigilante dos impávidos seguranças; o som vem do tilintar das garrafas de cerveja que um turista perdido traz num saco; o som vem das ondas do mar no escuro e silêncio da noite; o som vem da tromba de água que cai; o som vem da força da água na cachoeira acompanhada por gritos voluntários de libertação do aprisionamento. Em casa de Bia (Maeve Jinkingins), o som ecoa pelo latir, noite fora, do cão do vizinho; o som ecoa pelo aspirador que Bia faz uso para escoar o fumo e o cheiro da maconha que fuma às escondidas dos filhos - esse plano de Bia a segurar no tubo do aspirador junto à boca fez-me viajar até uma imagem de Bilie Holiday, muito nova, a cantar para o microfone; o som ecoa pela máquina de lavar roupa que leva a câmara a enquadrar o movimento do rapaz, que faz as entregas da água que camufla a maconha, em direção à proveniência do ruído, logo de seguida percebemos que a câmara estava a dizer-nos que havia ali um motivo para prestarmos atenção: o vibrar na centrifugação que excita Bia nas tardes quentes e de aprisionamento em casa; o som ecoa pela música dos Queen, Crazy Little Thing Called Love, que Bia ouve para relaxar durante a moca.


Bia, a mãe de dois filhos que passa o tempo todo em casa; João, solteiro, neto do rico da rua; e Francisco (Waldemar José Solha), avô de João e dono de mais de metade dos prédios da rua, acabam por ser os protagonistas de maior relevância nesta história de vidas daquela rua no Recife. Bia entedia-se em casa, com os filhos, e descontrola-se com o constante latir do cão da casa do lado; João entedia-se com o negócio/trabalho familiar enquanto agente imobiliário das casas do avô, não encaixando minimamente no seu perfil, apaixona-se por Sofia, mas vive demasiado aprisionado para seguir rumo com ela; Francisco entedia-se com a vida na cidade, prefere a vida no campo - tem casa e terras no campo -, e teme por ser a próxima vítima de um ajuste de contas do passado. Muitos outros personagens têm nome e vida na história, mas talvez o mais relevante seja mesmo o miúdo negro de quem não sabemos o nome, quem é, nem de onde vem, mas que vai pairando, aqui e ali, pela rua, pelo filme. Ele personifica a liberdade e, simultaneamente, a liberdade que é vista como ameaça à segurança, pelos moradores daquela rua - representados pelos seguranças privados contratados -, e, mais transversalmente, pelas classes mais privilegiadas da sociedade. Vemo-lo, o miúdo-liberdade, a correr repentinamente dentro de uma das casas em que o dono está de férias e que serve de motel de conveniência para segurança e empregada doméstica; vemo-lo - ou supomos que seja ele - a saltitar nas vandas e telhados durante a noite de insónia de Bia; vemo-lo escondido numa árvore, trepando nela, até ser descoberto pelos seguranças que veem nele um perigo para os seus protegidos; nós, espectadores, não vimos nada de criminoso da parte dele. Quem roubava os autorrádios era Dinho, um jovem branco de família rica, e não o negro que vagueia durante a noite.


O som do fogo de artifício libertado pela família de Bia faz-nos imaginar e força-nos uma visualização de tiros em casa de Francisco. É o poder do cinema, é o poder do som no cinema. Depois de pôr o som no nome do filme, depois de nos fazer andar e muito à volta do som, esse momento de fusão de sons reais (fogo de artifício e tiros de pistola), ou de som real (fogo de artifício) com som imaginário (tiros de pistola), é indubitavelmente o gatilho perfeito para disparar o final do filme.


'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho (2013)

Visionado em Filmin Portugal

'O Som ao Redor', de Kleber Mendonça Filho (2013)


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