'As Ervas Secas', de Nuri Bilge Ceylan: a mudança da perspektif
Depois de falhar à chamada no último LEFFEST (sala cheia numa das sessões e indisponibilidade de agenda na outra) para ver 'As Ervas Secas' (2023), de Nuri Bilge Ceylan, eis que se torna na minha estreia em Sala neste 2024. O cinema de Ceylan é puro deleite, e quantos mais filmes vejo (dele) mais sinto a sensação de que reforça e consolida aquele cunho identitário tão marcado. Ver um filme de Ceylan é como visitar uma galeria de arte, com mais ou menos explicações do significado de cada obra, tamanha é a panóplia de planos com enquadramentos sublimes que, além de fotografias - que vamos vendo em modo postal, digamos assim, em 'As Ervas Secas', tal como em 'Uzak-Longínquo' (2002) (aqui, na breve incursão que as duas personagens centrais fazem à Anatólia Oriental) -, bem poderiam originar pinturas, gravuras ou desenhos. O cinema de Ceylan reconforta-nos com o chá quente (e às vezes também com whiskey) depois do frio da neve que sentimos ao ver o vaguear de quem anda por meio dela, não apenas fugazmente, assim é em 'As Ervas Secas', como foi em 'Uzak-Longínquo' ou em 'Sono de Inverno' (2014), e já dentro, nos interiores, já aconchegados, muitas vezes continuamos a poder - nós e os protagonistas - olhar para fora, perder o olhar no manto branco. É o horizonte visual, o ver até perder de vista, que o cinema de Ceylan concede vezes sem conta nas montanhas daquela Anatólia, como se o tempo e a sua linha fossem infinitos, ou demasiado longos, ou demasiado lentos; espaço para reflexão constante sobre o viver e o existir, e onde a melancolia marca presença, inevitavelmente. Protagonista(s) e paisagem estão intrinsecamente ligados.
O cinema de Ceylan é também político, colateralmente, sem ser deliberado, um pouco à semelhança do cinema de Asghar Farhadi; ambos partem do indivíduo, o ser social, e da(s) sua(s) história(s), e acabam por tocar em temas sensíveis das sociedades (turca e iraniana, respetivamente) através do confronto / assimetrias de ideias e convicções ligadas à moral, à ética, aos costumes, às tradições, ao conservadorismo (mais ou menos religioso); e também na pobreza, nas desigualdades, nas hierarquias, nas autoridades. Em 'As Ervas Secas', naquele que me pareceu o filme com mais diálogos de Ceylan (de todos que vi), esta dimensão está bem presente.
Perspektif [perspetiva], a palavra que o professor Samet (Deniz Seliloglu) escreve no quadro da sala de aulas, mais ou menos a meio do filme, após ter sido acusado, juntamente como o seu colega de ensino e de casa, Kenan (Musab Ekici), de comportamentos físicos inapropriados, a remeterem para assédio sexual, por duas alunas adolescentes. E sim, a partir daquele momento, depois de ambos terem sido convocados pelo diretor distrital para lhes ser comunicado o sucedido - num enquadramento notável em que a câmara encosta à cabeça do diretor, poderoso, fazendo dela, em perspetiva, uma torre à frente e de frente para os dois pequenos peões Samet e Kenan - a perspektif de Samet muda. Muda a perspektif em relação a Sevim (Ece Bagci), a sua jovem aluna - acusou-o num ato de vingança - que era para ele como que um estímulo, um paliativo, uma réstia de esperança naquela terra perdida em nenhures, atolada em neve, no meio das montanhas, onde o deslocado Samet vive há quatro anos, numa descrença quase absoluta, suspirando por uma vida que sonha, que almeja e que sente estar a perder em Istambul. O à-vontade, a descontração, uma certa sagacidade de Sevim, a contrastar com as outras miúdas, num meio profundamente conservador, bem como a veneração dela pelo professor, seduziram Samet, não do ponto de vista físico e/ou sexual, porque em momento algum no filme isso é mencionado, pensado ou exposto, mas sim num ideal onírico, um sonho impossível, que foi alimentando no seu pesadelo naquela escola.
Ao mudar a perspektif de Samet face a Sevim, esta impacta no comportamento perante os restantes alunos, Samet perde as estribeiras e diz-lhes que eles estão todos condenados a plantar batatas e beterrabas para servirem os ricos. Samet soma raiva ao descontrolo e executa vinganças. Também a sua perspektif sobre Kenan muda, construindo uma convicção de que este é também responsável numa espécie de efeito bola de neve. No meio dos dois homens há uma mulher, Nuray (Merve Dizdar), professora também, numa outra escola, uma mulher forte, de convicções, de ideias, de esperança - a sua perna amputada após uma explosão e a utilização de prótese remeteu-me para Marion Cotillard em 'Ferrugem e Osso' (2012), de Jacques Audiard, e não é que os rostos de ambas têm incríveis semelhanças! Também aqui a perspektif de Samet face a Nuray muda; se de início o seu olhar demonstra, até com uma certa comicidade, o evidente desconforto pelo encanto que o rosto e as parcas palavras concordantes de Kenan potenciam em Nuray, ou seja, apenas o desagrado por ser de certa forma excluído, agora, com a mudança da perspektif, Nuray transforma-se numa arma para Samet usar contra Kenan, tal como a arma que o velho Vahit (Yuksel Aksu) guarda na gaveta da sua pequena e escura loja onde Samet se refugia naquelas tardes de Inverno, também com um jovem moribundo, para carpirem mágoas entre copos de Red Label. As conversas nos vários interiores, ao longo do filme, a chá, whiskey ou vinho, são invariavelmente longas, por vezes de largos minutos, quase sempre com a câmara estacionária.
Toda esta mudança da perspektif de Samet só vem acentuar a sua ânsia de partir, ele que sempre quis partir, como nos mostra Ceylan num plano em que Samet está sentado em cima de uma rocha que mais parece um cavalo, pronto a partir, sob o olhar e a imobilidade de Kenan, um homem daquela região, quase daquela terra, - isto quando ambos vão à nascente, no topo da montanha, encher garrafões de água e esta corre lenta e ruidosamente enquanto eles pensam e falam na(s) vida(s). O bando de aves que vemos a partir em migração na madrugada é outro sinal. Samet quer buscar a sua liberdade, a liberdade do indivíduo, advoga, sem amarras de grupos ou de ideologias, contrastando abertamente com o pensamento de Nuray, que preconiza a solidariedade e o 'nós' como ideais maiores; numa mesa de jantar Samet e Nuray servem-nos uma espécie de debate entre um socialismo humanista e um pensamento libertário.
Ainda na âncora da perspektif, completamente inusitada aquela (perspetiva) que nos foi dada dos bastidores da rodagem do filme, com a saída momentânea de Samet para a casa de banho. Quis Ceylan chamar-nos a atenção para o poder total do cinema? Para o seu poder de construir e desconstruir a realidade?
E com o Inverno a dar lugar ao Verão, muda a perspektif visual e com isso abre-se espaço para a reflexão existencialista narrada, verbalizada por Samet, em dois momentos, que veio antecipar-se e substituir-se à nossa, enquanto espectadores, naqueles instantes finais; talvez preferisse que ela não se desse, pelo menos tão aprofundadamente; julgo que Ceylan tenha sentido a necessidade de criar este momento para que Samet se abrisse a si mesmo (e a nós, público) pelas palavras, e retocasse o molde que foi construindo pelas suas ações ao longo do filme. Por outro lado, fiquei com a sensação que a figura de Kenan foi sempre deixada em banho-maria, mas talvez isso tenha sido mesmo um propósito.
About dry Grasses, de Nuri Bilge Ceylan (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas
'Ervas Secas', de Nuri Bilge Ceylan (2023)