DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 5 de março de 2025

Matt and Mara, de Kazik Radwanski: uma espécie de amor à tarde


Talvez 'O Amor às 3 da Tarde' (1972) seja mesmo o meu filme predileto de Éric Rohmer, talvez com um ligeiro ascendente sobre 'Noites de Lua Cheia' (1984) e 'Conto de Verão' (1996), tendo eu perfeita consciência que escolhas destas, entre filmes, são sempre tão subjetivas, tão momentâneas, tão periclitantes, que muito dificilmente serão perenes. Mesmo sem ter o acaso [o par hasard] como fator proeminente - como em 'A Mulher do Aviador' (1981), em 'O Raio Verde' (1986), em 'O Amigo da Minha Amiga' (1987), ou nos contos das quatro estações -, 'O Amor às 3 da Tarde', esse conto moral de Rohmer, é quiçá o filme que mais e melhor aglutina grande parte dos temas e consequentes reflexões que pintam o seu cinema: a moral; a angústia existencial; o amor travado; o desejo sem consumação; o quotidiano; a dicotomia Paris / subúrbios (pessoas e lugares); a realidade e a imaginação entrecruzadas. Enquanto via  Matt and Mara  (2024), do canadiano  Kazik Radwanski, qual o meu espanto quando a dada altura nos deparamos perante um espelho que nos devolve um déjà-vu, um plano enxertado de 'O Amor às 3 da Tarde': a imagem-adereço moral da camisola de gola alta que a protagonista (ao contrário do filme de Rohmer, aqui é na mulher que recaem os dilemas morais) sobe até à cabeça momentos antes da esperada consumação (física) do desejo, e que se transforma num freio (moral) à traição extraconjugal, uma imagem-sensor que aciona um quadro visual de família e casamento - quer o protagonista de 'O Amor às 3 da Tarde', quer a protagonista de Matt and Mara  subiam a camisola até à cabeça nas brincadeiras-teatrinhos com os respetivos filhos em casa. Pois bem, Matt and Mara  é uma espécie de l'amour à l'après-midi [amor à tarde], mas num outro tempo, em outras latitudes; e, já depois do plano déjà-vu, se ainda restassem quaisquer dúvidas quanto à homenagem que Radwanski  quis prestar a Rohmer, eis que o filme põe a câmara a apontar, no derradeiro plano, para uma estante de livros onde a letras vermelhas por cima de um verde água salta a vista o nome do cineasta francês [trata-se do livro ÉRIC ROHMER - Realist and Moralist, de Colin Crisp].


É a Mara (Deragh Campbel), uma professora de escrita criativa, casada com um músico, com quem tem um filho pequeno, que Radwanski  entrega o peso dos dilemas morais, tal como Frédéric (Bernard Verley) de 'O Amor às 3 da Tarde', quando a imaginação, repleta de fantasia, começa a virar realidade. Essa intenção de centrar uma certa angústia existencial em Mara é evidente e ganha forma estética desde o início do filme, quando a câmara móvel se cola ao seu rosto, reduzindo a profundidade de campo da sala de aula onde os alunos se sentam para ouvi-la - acabara de reencontrar Matt (Matthew Johnson), um amigo próximo dos tempos de Universidade, agora um escritor famoso que está de volta a Toronto (Canadá) por umas semanas. À semelhança do que acontece em 'O Amor às 3 da Tarde' com Chloé (Zouzou), Matt só existe no filme na companhia de Mara; é em Mara, na sua vida familiar, na sua vida laboral, numa certa vida social que Matt lhe trouxe, que nos debruçamos, e vamos tentando decifrar algo mais no seu rosto, na sua contida expressividade. A espontaneidade, comicidade, liberdade do desengonçado Matt (a fazer lembrar um pouco a figura de Adam Driver) funcionam como gatilhos para um processo de autodescoberta que Mara precisa de viver, onde fatalmente os desejos, que são segredos para ela própria - ouvimo-la dizer a Matt numa conversa sobre a ideia que está a pensar para a história de uma personagem de um livro que gostaria de escrever, e que faz obviamente ressonância nela própria -, começam a brotar. Então, digamos que aqui emerge uma linha divisória entre a obra de Rohmer e o filme de Radwanski: apesar de haver contornos similares nos dilemas morais que impedem a consumação do desejo e a consequente traição do casamento, desaguando ambos os filmes (Frédéric no filme de Rohmer, e Mara no filme de Radwanski) no plano da imagem-adereço moral ao espelho, todavia, o ponto de partida, ou seja, a essência moral dos protagonistas-seres-indivíduos é deveras diferente. Em 'O Amor às 3 da Tarde', a imaginação de Frédéric já contemplava amplamente o desejo (por mulheres muitas) como padrão comportamental, que depois ganha figura terrena e de realidade em Chloé; já em Matt and Mara, o desejo está a ser espoletado pelo regresso do passado e daquilo que terá representado Matt na vida de Mara.


Falemos do casamento, ou dos casamentos, porque quando vemos Mara em casa com o marido e o filho voltamos a pensar no filme de Rohmer. Frédéric e Mara parecem viver, nos respetivos filmes, uma consentida rotina de vida de casal, serena, sem altos e baixos, sem gritos nem gargalhadas, sem fúria, sem ciúmes, sem questionamentos dos respetivos pares, com poucas conversas, confortáveis e pacificados na companhia deles, mas com uma certa escassez de joie de vivre. Mara esforça-se por encontrar coisas na música que o marido produz e toca, mas a própria admite que a música em geral não lhe desperta uma resposta intelectual, afirmação essa que quase escandaliza os amigos do marido, à mesa, para quem a música é como o sol; com efeito, Mara também não gosta de sentir o sol na cara. Diferenças no casal que depois são compensadas de algum modo com o cozinhar a quatro mãos, ou com o cuidado dele a passar a camisa dela a ferro, ou no partilhar do afeto com o filho de ambos.


Da escassez de diálogos intramuros, Mara salta para as conversas na rua, com Matt. E aqui lembrei-me dos filmes de Kit Zauhar  (Actual People) e de James Vaughan (Friends and Strangers), ambos de 2021, longas-metragens de estreia destes realizadores, que centram as suas histórias numa certa deriva identitária, existencial até, de jovens adultos, urbanos, nos Estados Unidos e na Austrália, respetivamente, que acabam por refletir na forma dos diálogos essa indefinição, uma certa falta de emoção, também, sem a eloquência poética, literária ou filosófica de outros tempos, dos filmes de Rohmer, por exemplo. E há como que uma conexão a dar-se entre algumas conversas e a estética do filme - com os enquadramentos escolhidos quando o diálogo é a dois e sentados (de Mara com Matt, de Mara com a colega/amiga, de Mara com a aluna), com a câmara a alternar planos fixos dos rostos, bem como a própria nitidez no ecrã - que remetem também, tal como Zauhar e Vaughan, para o cinema de Hong Sang-soo, que tantos inspira. E testemunhamos também uma aparente quebra de sequência na narrativa, como é próprio do quotidiano e de Sang-soo, dando lugar e tempo para outras conversas de Mara, com outras pessoas, que não Matt ou o marido, deixando a realidade do dia a dia expressar-se também.


E com a morte do pai de Matt, e o consequente arranjo do fato que ele vai usar no funeral, o filme ganha nome: "Matt and Mara", ecoa o alfaiate, ao mesmo tempo que escreve no papelinho para contacto, como se de um casal se tratasse; na mesma bitola que uns momentos antes, numa loja de conveniência, o senhor assumiu que eles seriam marido e mulher, com o anuir de Mara e o regozijo de Matt - assim se brinca aos casamentos, às tardes, fora de casa. Mas, tal como no já deveras citado filme de Rohmer, há uma tarde em que o melhor é voltar a casa mais cedo e assim quebrar a rotina.


Matt and Mara, de Kazik Radwanski (2024)

Visionado em Mubi Potugal



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Matt and Mara, de Kazik Radwanski (2024)

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