DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa

Stéphane Pires • 23 de outubro de 2024

'O Palácio de Cidadãos', de Rui Pires: uma câmara do povo


Em DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa do ano transato escrevi sobre 'A Câmara' (2023), da dupla Cristiane Brum Bernardes e Tiago de Aragão, um título que funde as duas palavras homónimas - a câmara que filma a câmara de Deputados do Congresso Brasileiro -, ou seja, uma câmara (que filma) na câmara (de Deputados) ou a câmara (de Deputados) pela câmara (que filma). O ângulo de abordagem dos realizadores brasileiros incidiu especialmente nas mulheres Deputadas, acompanhando o trabalho legislativo delas, mas também a respetiva promoção (individual) nas redes sociais - veículos para chegar de forma direta, personalizada, mais informal, mais coloquial, e sem contraditório, ao povo -, participação em entrevistas e programas de televisão ou ainda conversas no corredores do Congresso. Apesar desta amplitude na mostra do trabalho parlamentar das mulheres Deputadas de Brasília, o filme tem uma matriz fortemente institucional, consubstanciada por uma câmara (que filma) a manter a distância nos trabalhos das sessões legislativas; bem como, a deter-se, sem pressas, em várias discussões procedimentais, argumentativas, legais, ideológicas, nos diversos temas; e, acima de tudo, pela neutralidade (se assim se pode dizer) no posicionamento ideológico que a câmara (que filma) adota, conferindo espaço e tempo proporcionais nos acirrados confrontos de ideias, crenças e valores - cabe-nos a nós, espectadores, censurar as alarvidades que vamos vendo e ouvindo. Na altura do escrito sobre 'A Câmara', recordo-me de mencionar a destrinça entre este filme e o 'Democracia em Vertigem' (2019), da também brasileira Petra Costa, em que a autora mergulha no impeachment de Dilma Roussef sem despir o fato das suas convicções pessoais e políticas, com absoluta legitimidade, claro está, entrelaçando-as com os factos que vai expondo e narrando, sem desvirtuar a realidade, diga-se. Depois de ver 'Palácio de Cidadãos' (2024), de Rui Pires, esta terça-feira na Competição Portuguesa do Doclisboa, diria que encontro mais similitudes com 'A Câmara', quer pela faceta institucional, quer pela vertente conceptual: uma câmara que filma sem querer fazer-se notar, sem injeção de voz e/ou escrita de narração, investindo nas imagens que nos mostra e no que ouvimos e lemos delas. Todavia, ao contrário de 'A Câmara', o filme de Rui Pires está ancorado na ideia de uma luta democrática por direitos fundamentais, iniciada no 25 de Abril, que tem de prosseguir, e aí aproxima-se um pouco da obra de Petra Costa, numa clara mensagem política. Não é à toa que o filme termina ao som da canção de José Mário Branco: "Eu vi este povo a lutar para a sua exploração acabar...".


"O Parlamento português, ou Assembleia da República, é constituído por uma câmara de Deputados que representa todos os portugueses", podemos ler no site oficial daquele organismo. Uma câmara do povo e para o povo que Rui Pires esforça-se por recordar, fazendo uso da sua câmara a cirandar pela Assembleia da República (AR) entre 2018 e 2019, o último ano da primeira legislatura do governo chefiado pelo então primeiro-ministro António Costa, em que o Partido Socialista (PS) contou com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda (BE), do Partido Comunista Português (PCP) e do Partido Ecologista Os Verdes (PEV) - uma solução política denominada, como todos sabemos, de geringonça. Para lembrar desde o começo que aquela câmara pertence ao povo, as primeiras imagens que vemos são mesmo de rostos comuns, do povo, na fila para visita à AR, de portas abertas no dia de comemoração do 25 de Abril. Numa representação parlamentar menos diversificada do que aquela que se verifica atualmente, é num ápice que um dos funcionários da AR explica a um cidadão assumidamente leigo em política a arrumação dos diferentes partidos no hemiciclo de então, da esquerda para a direita: BE; PCP-PEV; PS; PAN; PSD; CDS. Vemos rostos um tanto ou quanto apardalados dentro daquela sala, talvez percebendo que a real dimensão do espaço é substancialmente inferior à perceção ótica nas imagens que vemos na televisão; ou então, alguns deles, estarão a viajar pela mente até acalorados debates parlamentares vividos ali.


Seis anos separam-nos daquelas imagens e, na verdade, conseguimos identificar a constância dos mesmos problemas em direitos fundamentais dos cidadãos, mas, ainda, naquele momento, a ausência de outros temas fraturantes que hoje estão na ordem do dia. Vemos com foco e pormenor o livro da Constituição da República, de 1976, singelamente trasladado para uma vitrina expositora. "Isto é um momento solene", diz uma das funcionárias da AR. E é imbuído no espírito da Constituição da República que a câmara de Rui Pires assenta em debates, comissões e grupos de trabalho sobre direitos consagrados (na constituição) como a habitação, o trabalho - especialmente estes - ou a saúde. "A habitação é uma emergência social", diz a deputada Helena Roseta (PS), assim continua, com a diferença de agora a emergência ser ainda maior. A precariedade laboral experienciada pelos trabalhadores da Portway (empresa prestadora de serviços de assistência em escala nos aeroportos), a quem ouvimos a deputada Rita Rato (PCP) dar alento - "A razão está sempre do vosso lado, vocês têm a experiência de sobreviver com salários de miséria" - continua a ser comum a muitas empresas; a discrepância salarial entre trabalhadores e gestores na mesma empresa, que o deputado José Soeiro (BE) traz - graficamente, inclusive - ao debate no hemiciclo, prossegue, face à qual uma deputada do PSD riposta, recusando a ingerência do Estado nas empresas privadas, e com o CDS a apelidar a bancada do BE de totalitária e estalinista. Assistimos a alguns confrontos programáticos e mesmo ideológicos, mas, diga-se, sempre pautados por urbanidade, decoro, respeito; sem a baixeza, o insulto, a falta de compostura que assistimos por estes dias na AR, nos 50 assentos mais à direita do hemiciclo. Eis uma diferença. A imigração, que tem sido combustível de alta propagação para a extrema-direita populista, agora também em Portugal, ainda não era tema de discussão. Eis outra diferença. Mas não deixa de ser curiosa, e ao mesmo tempo impactante, a infeliz coincidência que encontramos no discurso do deputado Jorge Falcato na cerimónia comemorativa do 25 de Abril, naquela passagem sobre a bala da PSP que o deixou numa cadeira de rodas, num 10 de Junho de 1978, com os mais recentes acontecimentos no bairro do Zambujal (Amadora).


Cá fora, na parte exterior do palácio, a calmaria é total. O gato boceja ao sol, os passarinhos procuram-se um ao outro, a água da fonte corre lentamente, o pavão entra pela porta aberta. Voltamos lá para dentro para vermos um pouco do protocolo a cumprir na preparação dos almoços com convidados do Presidente da AR - com as funcionárias às voltas da mesa -, ou na preparação do dia dos cravos e a questão politicamente lógica de sentar Adriano Moreira (falecido, entretanto) à direita de Francisco Louçã.


E no final são projetos de lei aos magotes, amontoados em caixas, transportadas por mãos do povo,  que materializam o trabalho dos Deputados do povo. Deputados que também são apelidados de povo nos créditos finais.


'O Palácio de Cidadãos', de Rui Pires (2024)

Visionado no Doclisboa, Cinema São Jorge

'O Palácio de Cidadãos', de Rui Pires (2024)

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